terça-feira, 3 de abril de 2007

De roseiras, barbeiros e canários


Tem quem diga que é gênero. Pode até ser. O que implica, diretamente, numa espécie de distúrbio masoquista: porque, na verdade, só me trouxe solidão e angústia, quando não brigas e inimizades. Deve ser mesmo doença essa obstinação em se apegar àquilo que te foi legado, ensinado como certo, demonstrado como desejável. Em rejeitar as formas padronizadas prêt a porter, tão mais simples, tão mais práticas, e daí que importadas?, que importa se iguaizinhas pra todo mundo?

Não é possível, argumentam, que uma casa cheia de goteiras, vazamento, assoalho que range, calha que entope ser melhor que um moderno apartamento, com todo o conforto, segurança e assepsia demandados pela vida moderna. O homem moderno não pode estar a mercê de baratas, ácaros, vizinho que faz churrasco, vendedores de portão, pipas que caem no quintal. Pensava nessas coisas pela manhã tratando da roseira lá do jardim de casa. O homem que nos alugou, na assinatura do contrato, fez questão de nos conhecer ( bobagem, dirão os apologistas da praticidade: as imobiliárias estão aí mesmo pra isso, pra gente não ter que ficar aturando telefonema do inquilino, não se comover se ele ligar no final do mês pedindo mais cinco dias pra pagar o aluguel, porque a filha ficou doente...). Meio constrangido, justificou que gostava de saber quem é que ia morar na casa que o pai dele construiu; na qual cresceu e a mãe envelheceu, até morrer, coitadinha, havia uns meses. Coisa de gente antiga. Ou seria pra fazer gênero? Na despedida, só nos pediu que, se não fosse incomodar muito, não cortássemos a roseira que sua mãe plantara quando ele ainda era criança...

E fazendo gênero é que o meu coração assim se aperta todo dia, andando pelas ruas da Vila Romana, vila operária de maioria ítalo-descendente na primeira metade do século passado. Porque a cada passeio matinal com a minha filha de três meses, é uma fábrica que não está mais lá, uma vila inteira de casas que vai pro chão (vilas operárias, construídas e mantidas pelas tantas indústrias do bairro: Papéis Melhoramentos, Cerâmica Santa Catarina - depois Petybom - dos Matarazzo, tantas mais); é uma casa que resolveram "modernizar" a fachada, ou um butiquim que vira lanchonete, “espetinho” ou supermercado. E é inevitável, meus amigos, pensar que minha neta não vai ter ruas de árvores e casas e vizinhos pra passear nesta triste Cidade.

E é assim que, mesmo sem precisar tanto, meu banzo lapeano me levou, quase sem que percebesse, à velha barbearia do velho Arduile Bonizzi, sessenta e cinco anos de Lapa, onde se corta cabelo e se faz a barba sem precisar explicar, ao som de tangos e boleros, valsas e sambas de outros tempos, em fitas cassete sobreviventes de uma guerra suja e impiedosa impingida por inimigos invisíveis e desleais travestidos de fomentadores do progresso. Onde os velhos lapeanos ainda param pra ouvir e contar uma história de vez em vez, deixar recado, chave de casa esquecida pra mulher pegar quando chegar. Semana passada o vizinho da rua debaixo deixou os três canários pro fígaro tomar conta. De modos que eu, de olhos fechados por causa do talco, ouvindo Chico Alves desfilar versões duvidosas de boleros tão conhecidos, acompanhado devidamente pela passarinhada em coral, pude voar por minutos acima de uma realidade de incompreensão, ganância e utilitarismo. E saindo de lá, tive mesmo a impressão de encontrar meu avô dobrando a esquina, de paletó, gravata e pasta preta, sorrindo com um pacote de balas-de-goma e cigarrinhos de chocolate Pan só para mim.

4 comentários:

  1. As pipas, Fernandão, as pipas! Faz alguns anos que elas já não caem no meu quintal. Levantaram 3 torres de quinze andares cada uma atrás de casa... E levaram embora a favela da esquina.

    Hoje, a molecada se amontoa numa quadrinha 4x5. Dez, quinze moleques ali, naquela gaiola. Nós éramos em seis na rua e tínhamos ela toda pra gente.

    Também fico triste com o destino da Vl. Romana - passei várias tardes da minha adolescência naquele posto que hoje está abandonado na rua Aurélia, o Auto Posto Tibre - e de vários bairros que sofrem do mesmo mal. O tal progresso é implacável, e um tanto quanto mal-educado.

    Abraços!

    ResponderExcluir
  2. A cada palavra tua, Fernandão, caminhei contigo pelas ruas da velha Lapa. Numa viagem nostálgica, lembrei da infância de outrora, quando ia com minha mãe e avó para lá, visitar tias que viviam em casas como a tua, exemplares guerreiros de um tempo que querem sepultar.
    E, ao final da sua jornada, saboreei ávida, um cigarrinho de chocolate Pan que roubei de ti.
    Lindo post.
    Beijos

    ResponderExcluir
  3. Anônimo5/4/07 15:36

    Por essas e outras eu julgo lorpas e pascácios os que me dizem: "Pombas, o Jaçanã é longe, porque não muda para um "AP" no centro?"

    Ao que eu, prontamente, respondo: "Primeiro que, para mim, "AP" é Ação Popular e ingressou no PCdoB em 1972. Não mudo porque não consigo levar no carreto a banca de jornal do Toninho, que me fornece diariamente a Folha e o Lance sem que eu meta as mãos no bolso (boto no prego e pago quando quero), porque não levo o botequim do Edmar e suas comidas do Norte, nem muito menos a barbearia do seu Leonel, único a picotar decentemente esse emaranhado que levo na cabeça".

    Abraço, malandro.

    Borgonovi

    ResponderExcluir
  4. Belo texto, meu velho.

    Me emocionei, e fiquei com vontade de cortar minha juba lá. Só não vou porque o utilizo os mesmos préstimos do bom Elídio, há vinte e um anos, no centro da capital. Vai dar ciúme!

    abraço.

    ResponderExcluir