Não sei se voltarei
Tu não me queiras mal
Hoje é Carnaval
(Jair do Cavaquinho e Nelson Cavaquinho)
Gosto de dizer que existe uma alegria de samba que só sabe o que é quem já viveu. Aquela sensação de alma lavada, de viver a vida, num momento, longe e a salvo da mentira que campeia. De poder exercer a emoção, a liberdade, o encontro do outro, se não sem máscara, ao menos imbuído daquela que encena e encarna o jogo de ocultamento-revelação propriamente sedutor, prenhe de uma verdade nossa tão superior à dissimulação unívoca quotidiana.
Mas há, analogamente, uma tristeza de samba. Ela que, já sabemos, é senhora, mãe e filha desse sentimento que nos irmana numa mesma crença devota, na sabença iniciática de alguns entendimentos e sentires. E é essa que encharca-me os olhos e o coração neste momento em que soube que os cavaquinhos parceiros de Vou partir se juntaram no céu. Jair da Costa, o Jair do Cavaquinho, bamba número 1 da minha querida Portela, professor na arte maior do samba, nosso dom, foi encontrar os velhos companheiros.
Quem desde muito o conhecia da Portela, das apresentações da Velha Guarda ou dos rega-bofes de Oswaldo Cruz não podia imaginar o gigante encastelado naquele octogenário metro e sessenta ornado de poucos cabelos e nenhumas rugas, que a sensibilidade e à tenacidade de Tereza Cristina e Pedrinho Amorim lograram em justo momento evidenciar. Registrei num texto que republico abaixo a avassaladora comoção que causou a esta cidade que o recebia pela primeira vez em palco do Sesc Ipiranga. Graças também ao auxílio luxuoso de Marisa Monte, Jair pôde a tempo nos legar, num registro à altura de sua grandeza, várias das obras-primas que até então nos soavam inacreditavelmente inéditas, coroando com um belíssimo disco sua trajetória de bamba.
Juntam-se outros cacos no grande mosaico de beleza simples e irradiante que guardarei no meu coração. Um encontro que propusemos lá no Jardim América e ele quis marcar na Cinelândia, "pra poder tomar um chopinho mais tranqüilo, sabe como é muito perto de casa...", em companhia do Paulinho Neves. O dia em que ele foi ao Ó do Borogodó conhecer os Inimigos do Batente que o acompanhariam na homenagem que lhe prestou a Agenda do Samba & Choro em seu VIII Aniversário. Chegou preocupado, não conhecendo os músicos, marcou ensaio, passou repertório, indicou tom. Quando começou a roda, caiu no samba, deu canja de meia hora, não queria ir embora, desmarcou o ensaio e disse que pra ele "já tava tudo certo"! Ou naquela tarde de histórias de sambas e malandragens de outros tempos, num papo furado que nos juntou, mais o Paulinho Timor e mestre Wilson Moreira.
Acabo de lembrar que, na última vez que o vi, prometi levar-lhe para autografar um meu LP dos anos setenta, em que ele está na capa, vestido de verde-e-rosa (!), ao lado do Dedé da Portela, Gracia do Salgueiro, Joãozinho da Pecadora (se não me engano) e outros do naipe. Se pudesse lhe deixar um bilhete pra levar, seira o que escrevi após a homenagem de 2004:
Graças a Deus a vida tem-me permitido conviver e trabalhar com muitos de meus ídolos. Seu Jair, além de uma maravilhosa e importantíssima figura da história do samba brasileiro, é um dos mais profissionais, solícitos, bem-humorados, simpáticos, tranqüilos artistas com que já tive o privilégio de trabalhar. Merecidíssima homenagem, nunca assaz reiterada!
Assinado: Fernando
Belíssima homenagem ao número 1 da querida Portela! Na certeza que a "Tristeza de samba" ainda é samba, fico aqui ouvindo um samba para ele!
ResponderExcluirUm grande beijo
A imagem mais forte que guardo do seu Jair é a do velho dançando o miudinho num show do João Caetano ou Carlos Gomes, cena que ele repetiu muitas vezes, inclusive no Candongueiro, apesar do monte de gente em volta. Outra cena: anos 70, eu era cineclubista e fui a uma reunião no Cineclube Glauber Rocha, em Santa Teresa, mas parei no Largo dos Guimarães porque lá estavam, sentados num banco, seu Jair e Nelson Cavaquinho, tocando e cantando para uma pequena platéia. A mais antiga: levado por minha irmã e pelo namorado dela na época, o grande Chico Feitosa da Bossa Nova, o falecido Chico Fim de Noite, eu com uns 12 ou 14 anos entrei fazendo cara de adulto no Teatro Opinião para ver os Quatro Crioulos. No improviso, a parte dele dizia: "Eu sou Jair da Portela/ Samba é o meu natural/ Eu visto azul e branco/ Nos dias de carnaval". Numa festa na casa do Ilton e da Hilda, lá atrás do Candongueiro propriamente dito, um papo de meia hora com ele e a neta dele, dia em que ele me esclareceu jamais ter ouvido falar em certa figura do jornalismo que se dizia sobrinho dele. Lembranças queridas do mais simpático componente da querida Velha Guarda da Portela. Valeu Szegeri! Valeu Edu! Abraços e carinho do...
ResponderExcluirÉ Fernando... O grande mestre portelense morreu e o que se viu foram notas... Graças que temos gente como você que exalta toda a importância de um cara como Jair.
ResponderExcluirFazia tempo que não pintava aqui (ou melhor, faz tanto tempo que ainda é lá, no outro endereço).
Abraços e qualquer dia apareço lá no Ó. Saudades mesmo dos tempos de Espaço Cuca às sextas.