quinta-feira, 6 de abril de 2006
Número 1
Lamento profundamente por aqueles que não assistiram ao espetáculo que mestre Jair do Cavaquinho et caterva proporcionaram à estupefata platéia do SESC Ipiranga na noite deste sábado. Choro, principalmente, por aqueles que desistiram na última hora, que foram colhidos pela chuva ou pela preguiça, e sobretudo - ai! - pelos que não conseguiram desmarcar com a namorada.
Sem dúvida, a emoção amiúde me acentua o traço. Mas não é esse o caso quando afirmo que entre os abençoados que partilharam comigo aqueles momentos, pouquíssimas vozes destoariam da unanimidade: um dos maiores momentos do samba nesta cidade em muitos e muitos anos. Para mim, particularmente, que procurei acompanhá-los quase todos, desde um triste tempo em que não andavam nada freqüentes por essas plagas, só se compararam uns três ou quatro.
Perfeição musical e profunda emoção. Coisas que não somente são raras de se conjugar como, em certo sentido, podem até antagonizar-se. Porque muitas vezes na busca da perfeição "técnica", acaba-se por deixar o coração em segundo plano, ou, em sentido contrário, a emoção exacerbada pode acabar comprometendo a correção. Não foi, de modo algum, o que vimos. Raros espetáculos musicais em minha vida (não estou falando só de samba) lograram atingir tamanha precisão de conceitos e formas. Os músicos maravilhosos (ouvi dizer que Carlinhos 7 Cordas e Pedro Amorim não podem mais aparecer aqui em SP: mandado de prisão expedido, por solicitação de dois cardíacos presentes no SESC Ipiranga, por exposição da vida e saúde alheia a riscos). Os arranjos perfeitos: instrumentos valorizados, na justa medida, fazendo cada canção render o melhor de si. O coro (ah!, como o samba é coro!) impressionantemente sintonizado. E houve Tereza Cristina, esplendorosamente respeitosa e carinhosa com o Mestre. Com certeza, uma das grandes responsáveis por este espetáculo e por este resgate.
E Seu Jair? O que dizer de um homem que aos oitenta anos é a imagem exata de tudo o que a tradição do samba acumulou nesses tempos? Melodia, letra, dignidade, bailado, a sabedoria... Ali estava Clementina e o seu Rosa de Ouro. Ali estavam o Voz do Morro e os 5 Crioulos. Ali estava Paulo e sua Portela. Ali estava o parceiro Nelson Cavaquinho. Ali estava, nada mais nada menos do que Jair do Cavaquinho, sócio número 1 da Portela, a melhor paletada de cavaco do samba, como sentenciou ninguém menos que Jacob do Bandolim. Quem poderá esquecer a imagem do Mestre bailando o "partido-alto" ou o "miudinho", com a graça, a leveza e a molecagem de um drible do Mané? E que canções, meu Deus. Como é que pode a gente ter conhecido, até agora, só meia-dúzia de sambas do homem? Aliás, todas obras-primas, o que dá a conta da sua grandeza como compositor. E pelo que pude conhecer, parece que aquele baú guarda inestimável tesouro. É reconfortante saber que tem alguém preocupado em não deixar que isso se perca.
A emoção? Digo com todas as letras e em caixa-alta, pra ninguém duvidar: NUNCA VI IGUAL REAÇÃO DA PLATÉIA AQUI EM SÃO PAULO. "Não basta um idioma inteiro" para descrever o estado de enlevo coletivo que colheu o público. Perguntem a qualquer dos amigos meus que saíram dali chorando (que eu vi, uns quatro). Ou perguntem ao próprio Mestre...
Hoje, 48 horas após o ocorrido, posso repetir para o grande Jair do Cavaquinho, o que lhe consegui balbuciar entre soluços no próprio sábado: Tua imagem permanece imaculada em minha retina cansada.... E permanecerá sempre. Coisa para se contar aos netos.
(Março de 2001)
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