Rubem Braga
Amanheci resfriado - e a manhã também resfriada, com nuvens pardas e sujas e um pequeno vento maligno.
Ontem tive um dia mau, um desses dias em que a gente tem vontade de ir até o aeroporto, puxar as notas que tem no bolso e os níqueis e dizer em qualquer balcão de companhia: "Me dá isso de passagem."
A cidade estava francamente hostil. Pululavam mulheres feias e homens desagradáveis. Parece que eles se telefonam e combinam todos sair à rua em massa determinado dia, ocupar os pontos estratégicos, patrulhar as calçadas, ocupar os transportes, abarrotar os botequins, cortar toda a esperança e estragar toda a paciência de um pobre homem distraído e de boa vontade.
Fizeram isso. Vieram de todos os bairros, e mal escondiam sua nefanda combinação: falavam-se em voz alta, abraçavam-se nas portas dos elevadores diante da raiva impotente dos cabineiros e dos passageiros que tinham pressa, conversavam de boca cheia nos restaurantes e fungavam nos cinemas.
E onde estavam as outras pessoas? As mulheres suaves, os amigos reconfortantes, as pessoas desconhecidas que, entretanto, fazem bem, o mulato alto de quem nos sentimos irmãos quando nossos olhares se encontram depois de verem ambos a mesma mulher que passa com certo jeito engraçado? Ou, por exemplo, aquele vendedor ambulante e clandestino de cigarros estrangeiros a quem não quisemos comprar nada e mostramos nosso cigarro mata-rato, e nos filou um dizendo amavelmente: "Isso é muito melhor"; e aquele chofer que podia fiar irritado com a barbeiragem tremenda da mocinha do fusca, mas apenas lhe gritou com um sorriso: "Você acaba aprendendo, meu bem!" - ou o sujeito do interior que numa intimidade súbita nos fala de sua lavoura e de seu filho que está querendo estudar para aviador, ao passo que o mais velho tem gosto é para a criação de gado, "falou com ele de boi, ele está satisfeito - onde estão as almas boas, as súbitas mulheres lindas de vestidos simples, os doidos simpáticos, as caras amenas, as vozes estranhas que nos comovem por algum acento familiar, a gente humana da cidade?
Creio que todos foram avisados que era dia de se esconderem. Talvez os amigos estejam reunidos em uma festa improvisada e, quando eu me queixar que ninguém me avisou, digam: "- Puxa, mas todo mundo sabia, eu estava crente que você ia aparecer." E então descobriremos que saímos de um lugar cinco minutos antes de um amigo chegar, ou chegamos dez minutos depois, e nos telefonaram quando não tinha ninguém em casa, e nós discamos inutilmente três vezes para um aparelho com defeito - e assim ficamos desprezados, entregues à população hostil, bebendo, de cara voltada para a parede, o conhaque amargo da solidão.
(in As boas coisas da vida, Rio de Janeiro: Record, 2003, pp. 115-117)
Por que é que eu não escrevi isso antes?
ResponderExcluirBeijo, mano.
Que bom ter seu blogger de novo e poder apreciar palavras tão bonitas.
ResponderExcluirUm beijo grande,
Kiki
Querido Fê,
ResponderExcluirNão serei anônimo p/ sempre tá, depois, com mais tempo, faço a senha e o log in.
Bjsssss muuuuuuuuitos
Kiki
Perfeito, perfeito. OBrigado por mais essa....
ResponderExcluirEngraçado, né?
ResponderExcluirEu vim dois dias depois e, como o Hélion, só posso expressar um "perfeito"...
Que coisa.
;)
PS:
ResponderExcluirMande um bom pensamento, um vestígio qualquer de abraço e o número identificador dos pés e fique aguardando a chegada das tuas galochas.
;)
Adoro Rubem Braga...
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