segunda-feira, 20 de março de 2006

Gaudium et spes


Quero é a delícia de poder sentir as coisas mais simples
(Manuel Bandeira)


São Paulo teve a felicidade de receber neste final de semana (e o fato de ser a negação dialética do Brasil confere, ao menos, algumas prerrogativas à cidade), dois eventos que encheram de alegria e esperança os corações dos que ainda têm olhos pra ver e ouvidos para ouvir.

O primeiro, havia já cantado a bola semana passada, foi o Terruá Pará. Mais de sessenta artistas das mais variadas tendências da música pujante que se faz no mais belo estado brasileiro, com sua força expressiva, sua autenticidade arraigada, sua identidade tão própria, bem como - por que não dizer? - suas contradições, muito bem representadas pela barulheira desconexa do “tecno brega”. Destaque para a força instrumental desse torrão que faz brotar músicos aos borbotões em cada meandro de rio, em cada esquina de cidade, em cada igarapé, representada entre outros pelo guitarrsita Pio Lobato, das fileiras do roque e com a sensibilidade de perceber as riquezas todas do universo musical amazônico, do genial maestro Luís Pardal, pelas “metaleiras” que animam os carimbós levanta poeira desse mundão de meu Deus, pelos excepcionais mestres da Guitarrada.

Tudo esteve lá. Das raízes de Dona Onete, do Boi Veludinho e do Arraial do Pavulagem às vozes sofisticadas de Nilson Chaves e Lucinha Bastos, passando pelo impacto do tecno-brega da Gabi, o Pará é aquilo mesmo. Não há – e isso talvez o que mais tenha-me impressionado desde 1991 – o menor traço de folclorismo naquelas todas manifestações. Todos os artistas que ali se apresentaram tem seu público, seu papel. Nilson Chaves não é um ícone venerado pela intectualidade “preocupada” com a música de raiz: é um fenômeno de sucesso e popularidade há 30 anos, menestrel de sua terra e de sua gente, querídissimo pelo povo paraense de todas as classes sociais. Os bois arrastam multidões pelas ruas de Belém nas épocas próprias, os bailes dos carimbós e das guitarradas do interior fervilham de uma gente que não consegue viver longe da música. O tecno-brega das aparelhagens pode estar criando uma geração ensurdecida pela potência irracional e desproporcional dos equipamentos de som, mas só quem já percorreu muito aquelas periferias sabe da sua força com as multidões, tanto como os bailões de brega, zuck, jererê e por aí vai. Facetas várias, por vezes opostas, por vezes contraditórias, de uma terra que respira musicalidade até no jeito de falar e andar, onde a Rádio Cultura (dedicada excelusivamente à boa música popular brasileira e em grande parte privilegiando a produção local) está sempre disputando as primeiras colocações no ranking de audiência.

O outro banho de beleza não só musical foi a série de shows de lançamento do álbum Trilha, Toada e Trupé do grupo paulistano A Barca, composto por três Cd’s e um DVD, fruto de uma peregrinação por mais de 10.000 km em nove estados brasileiros, do Pará a São Paulo, entre dezembro de 2004 a fevereiro de 2005. Foram trinta comunidades visitadas, entre aldeias ribeirinhas, terreiros, quilombos, periferias de cidades, sempre colhendo material, registrando, interagindo. O resultado do trabalho que está no álbum e esteve no palco do teatro do Sesc Pompéia é material obrigatório para quem se propuser a refletir sobre o papel das manifestações culturais na vida e na estrutura social dessas comunidades e, conseqüentemente, de todo o povo brasileiro.

Mas acima de tudo, o que ali se viu e que se pode ouvir do que foi colhido é a aparentemente inesgotável e profunda beleza das formas expressivas que misturam sonoridades, coreografias, dramaticidades que levam ao mais aguçado limite a dialética entre simplicidade e sofisticação. Universos sonoro-visuais inacreditavelmente ainda possíveis, formas que se perpetuaram e resistem contra e a despeito de toda desconstrutividade do nosso mundo que a tudo devora e planifica, na alma dos artistas e das comunidades que os gestam, maravilhosamente colhidos, tratados e recriados pelos competentíssimos músicos d’A Barca, o que só faz evidenciar mais e mais as possibilidades de riqueza estética e expressiva espalhadas pelo chão brasileiro.

Dois grandiosos momentos que acabaram por coincidir no espaço-tempo, dois gigantescos esforços de produção competente e arrojada, a cujos responsáveis devoto aqui o maior respeito e admiração. O público afortudanamente respondeu à altura, lotando os dois eventos, prestigiando o que de melhor ainda tem o Brasil, demonstrando tamanho envolvimento e respeito que me fizeram, em átimos, acreditar que tudo ainda pode ter jeito.

Um comentário:

  1. Eu passei o final de semana todo enfurnado em sala de reuniõa, não vi nada disso ... mas é uma delícia ver A Barca refazer essa trajetória, que tem tanto a ver com Mario de Andrade, conhecendo e mostrando um Brasil fora do circuito comercial. Uma "raiz" (palavra horrível) que vale a pena ver não só porque é antiga, mas porque é boa!

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