Ao povo o que é do povo

Fernando Szegeri 


Mais uma vez, por generosidade de mestre Nei Lopes, tive a felicidade de ver publicado texto meu no bimestral Jornal da AMAR (Associação de Músicos, Arranjadores e Regentes), sociedade autoral da vanguarda na luta pelos direitos de músicos e autores no Brasil. Referia-me ali ao conceito de produção cultural nacional, contrapondo algumas conclusões de um seminário picareta promovido pelas Organizações Globo para tentar fazer a nação engolir que a Vênus Platinada é o grande baluarte da cultura brasileira, com seus big brothers, domingos faustos, sandies e juniores. O texto que segue é o desenvolvimento de alguns conceitos ali estabelecidos, a partir de algumas reflexões que pude propor em por ocasião do seminário “Cultura para o desenvolvimento nacional”, promovido pelo Instituto Maurício Grabois no mês de abril passado. 

Tomemos a definição de cultura em sentido mais amplo, em oposição anatureza, como todo o conjunto do fazer humano: falar, comer, morar, construir, trabalhar, vestir etc. “Uma cultura” especificamente pode-se entender não somente o somatório dos produtos do fazer de um determinado povo, mas para que haja um traço distintivo, para que se possa falar na cultura A ou B, mister se reconhecer um JEITO, uma forma própria, característica que se expressa nesses produtos e os perpassa. 

Não canso de citar Mário de Andrade: 

Brasil amado não porque seja minha pátria,
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der...
Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso,
O gosto dos meus descansos,
O balanço das minhas cantigas amores e danças.
Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada,
Porque é o meu sentimento pachorrento,
Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir. 

( “O Poeta come Amendoim”, in Poesias Completas, São Paulo, Martins Editora, 1955. p. 157-158) 


Esse JEITO traz subjacente estruturas e padrões cognitivos, interpretativos, valorativos etc. Então, o campo da mediação cultural, onde são postos em comum e em frente uns aos outros os diversos JEITOS de falar, cantar, vestir, comer etc., constitui-se na arena privilegiada de compartilhamento (no sentido de por em comum) de estruturas cognitivas, interpretativas e de ação sobre o mundo. 

Esse compartilhamento é fundamental para que se criem referências simbólicas e valorativas comuns que permitam que haja ENTENDIMENTO como cimento das relações sociais. Na falta desse entendimento, as relações sociais formalizam-se e tendem a dar-se por meio de estruturas formais rígidas previamente estabelecidas (que, de certa forma, portanto, são o oposto da arena cultural): relações de poder formalizadas (sistema jurídico) e relações econômicas mediatizadas pela categoria abstrata do dinheiro. O encontro pessoal é substituído pelas relações institucionalizadas, que guiam-se pela lógica sistêmica (de uma racionalidade voltada ao cálculo estrito de meios e fins), que no âmbito do capitalismo, é voltada ao lucro, à acumulação e à perpetuação. 

Feita essa introdução, mister retomar o conceito de Nação (no sentido do que queremos construir) como uma estruturação social guiada não pela lógica do lucro, mas pela lógica da realização da pessoa humana, enquanto indivíduos e enquanto grupamentos. Portanto: serão nacionais, nesse sentido, as práticas no campo do fazer humano que reafirmem um jeito de ser específico do povo brasileiro, de modo a fomentarem categorias simbólicas e cognitivas comuns que propiciem e induzam padrões de sociabilidade alternativos, que não se guiem pela lógica do dinheiro/poder. Esses padrões, portanto, terão como traço distintivo, a ação participante do indivíduo, que define os espaços e regras de mediação social na prática, contantemente, e não previamente.O fazer cultural tem esse duplo caráter: ao mesmo tempo em que serve de arena de mediação dos valores, padrões etc., ao mesmo tempo é a realização MATERIAL de um espaço de convivência que se redefine a posteriori, pela prática. 

Será, portanto, nacional o fazer cultural que reafirma padrões de sociabilidade tendentes a criar uma nação não nos padrões da sociedade capitalista e opressora (é claro que esse conceito é determinado ideologicamente; mas se não o for, ou seja se eu não pensar no modelo de nação que eu quero construir, o sentido de “nacional” perde completamente a utilidade e importância). Nesse sentido, podemos igualmente definir o popular a partir da definição do que é povo, não em geral, mas particularmente. Essa definição tem que partir de uma consciência histórica sobre a formação daquele povo e caminhar rumo a uma utopia de existência singular (porque se não há um elemento distintivo, o conceito perde o sentido), expressiva (porque há que se poder reconhecer esses traços da singularidade como marca imposta no produto do fazer coletivo daquele povo), independente e integrada (porque as determinações e limitações dessa singularidade hão que brotar do processo de mediação com outros povos em igualdade de condições, isto é, idealmente desconsideradas as desigualdades advindas do jogo do poder econômico). Assim, da mesma maneira como no conceito de nacional, só será popular o fazer cultural que reafirme as características históricas de um povo rumo a esse ideal utópico. Vale dizer, as práticas que induzem a perda da singularidade, da expressividade e da liberdade (enquanto independência e integração) serão consideradas anti-populares. 

É claro que as definições apresentadas são propositivas, afirmativas. Porque não se trata unicamente de se fazer sociologia descritiva da cultura. Trata-se de criar parâmetros e paradigmas que possam orientar, por exemplo, políticas públicas de fomento e incentivo à cultura. Quais manifestações apoiar? Quais iniciativas realmente colaboram para o desenvolvimento de práticas culturais “libertárias”? Trata-se, é claro, de uma opção politicamente determinada, em função de objetivos. Se não se tem uma adequada compreensão do papel da cultura e da arte (como expressão mais elaborada daquela), corre-se os riscos: 1) de menosprezar a VERDADEIRA importância dessa dimensão da vida social; 2) de não ser possível o estabelecimento de uma efetiva POLíTICA CULTURAL, mas tão somente a assunção de um papel gestor de verbas e orçamentos para viabilização de projetos pontuais. 

A idéia de brasilidade foi forjada a partir da cultura dos indivíduos comuns do povo brasileiro e traduz essa forma nossa toda particular de ser e estar no mundo, reconhecida em todas as partes do mundo. É claro em muitíssimos autores brasileiros desde o século XIX que a elite sócio-econômica não se reconhece nesse jeito de ser. Suas aspirações, suas referências, seus valores são importados, vêm dalhures e negam expressamente a originalidade, a significação e a importância dessa cultura nativa. A idéia de pertencimento a uma nação foi, pois, forjada a partir das classes populares, que dela se valeram, desde há muito, como uma força aglutinadora, de resistência. Por isso insisto no reconhecimento da verdadeira importância da dimensão cultural na vida do povo e da nação. Veja-se que até agora não precisamos, operacionalmente, delimitar o conceito de cultura na perspectiva dos diversos campos dos fazeres humanos. Porque estamos falando de MODO, de JEITO, que pode se expressar desde no falar, no cozinhar, nos hábitos, até na música, na dança e na literatura. E de como esses JEITOS adquirem consistência simbólica (remetem a significados) quando servem de esfera de mediação entre os indivíduos. E esse processo de constante mediação é o que permite que as relações sociais se processem baseadas na integração racional pela via do entendimento entre os indivíduos, e não de acordo com as estruturas formais de mediação que tendem a gerar relações reificadas, marcadas pela opressão. 

Defender a cultura brasileira e os conteúdos nacionais e populares, cobrar políticas efetivas, claras e conscientes destinadas à preservação dos valores básicos da brasilidade etc. integra uma trincheira fundamental de luta política em busca da transformação das estruturas de opressão da nossa sociedade, tão importante quanto a luta pelo trabalho, pela educação e pela moradia.