segunda-feira, 26 de abril de 2004

Se não têm pão, comam brioches...

O Opinião do Edu de hoje cita escrito de autoria de uma certa Ana Cristina Reis, publicado na edição de "O Globo" do último 17 de abril. O que seria um comentário acabou não cabendo lá e vem para cá, para azar de vocês quatro.

Sinceramente, acho que desse aborto do jornalismo, a que por comodidade chamaremos “texto”, podemos extrair valiosas lições sobre o pensamento que domina um fatia considerável de nossas elites, explicitamente, e freqüenta mesmo o inconsciente coletivo de uma larga parcela da nossa população.

Trata-se de uma matriz de pensamento segundo a qual o acesso aos bens materiais deva ser guiado unicamente pelo desejo (no sentido mais hedonista do termo), que funciona como um motor psíquico a impulsionar as atitudes do sujeito, sem o qual estaria este condenado ao tédio eterno e mortal. Ora, tal concepção da realidade pressupõe, logicamente, que todas as necessidades primárias efetivas (assim entendidas aquelas coisas sem as quais a existência material não perdura – o ar, o alimento, o sustento material) estejam plenamente satisfeitas. Isto é, pois, nesse modelo, um dado. Por outro lado, a satisfação das assim chamadas necessidades secundárias (ou aquelas sem as quais a existência não se coaduna com as mínimas expectativas em relação ao uma concepção arquetípica da pessoa humana – a educação, a cultura, o lazer, a cidadania) passa a uma decorrência natural da existência primária. Isto é possível, obviamente, porque esse arquétipo humano é pensado a partir do padrão do próprio sujeito que engendra essa bela representação da realidade.

Assim, portanto, esse modelo pode conceber que o anseio pela terra, pela moradia, pelo trabalho sejam uma mera afetação psicológica, um capricho de quem não tem algo e se sente motivado a conseguir, para afastar seu vazio interior, assim como um colecionador de vinhs e sapatos. Ou, por outro modo, se nunca me passou pela cabeça que um ser humano não tenha as necessidades mais elementares satisfeitas por obra e graça da ordem natural das coisas, automaticamente eu tendo a considerar que problemas como não ter o que comer ou onde dormir não possam estar na pauta de preocupações elementares dos humanos como eu. A conclusão, ainda que não formulada, não pode ser outra: os que se debatem com essas primárias e insatisfeitas necessidades não partilham da minha natureza, ou são uma anomalia na ordem natural. A partir daí, também não segue que devam ter atendidas as suas demais necessidades, pois o padrão de expectativa não lhes é aplicável.

A formulação pode parecer, a alguns, forte nas tintas. Mas já não viram vocês gente doando roupa velha que nem pra pano de chão serviria, justificando: “essa gente não liga pra essas coisas...”? Ou seja, ESSA gente não é a nossa gente que come, dorme, se veste, vai à escola, ao médico e trabalha. É uma outra gente...

A outros, o argumento pode parecer prolixo demais. Mas eu justifico o esforço. Não posso de outro jeito compreender como uma criatura que dispõe das ferramentas de um jornal do tamanho de “O Globo” possa comparar a necessidade de terra para trabalhar, comida e trabalho a um “apetite psicológico” por um vinho ou um sapato caro. A não ser, por óbvio, que a autora considerasse que as oportunidades na sociedade brasileira são iguais para todos e que os que não têm condições mínimas de trabalho, saúde, alimentação e moradia devam isso à sua pouca disposição ou habilidade para ganhar dinheiro. Mas eu tendo mais a acreditar em abjetas deformações ideológicas do que em simples burrice e estupidez em tamanho grau. Soa-me benevolente demais com quem não merece.

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