segunda-feira, 26 de abril de 2004

Cravos da esperança

Cravos da Esperança


Ainda que com um dia de atraso, não poderia deixar de plantar aqui um cravo vermelho em homenagem aos 30 anos da derrubada da ditadura salazarista em Portugal, celebrados no dia de ontem.

Nosso Chico Buarque de Hollanda, inspirado pelos ventos da Revolução dos Cravos e imerso em um Brasil dominado ainda pelas trevas da ditadura, escreveu a primeira versão pouco conhecida do clássico Tanto Mar:

Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também que é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim


A canção foi censurada, obviamente. Liberada três anos após, Chico reescreveu a letra, algo decepcionado com os rumos da política portuguesa:

Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
n'algum canto de jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, como é preciso, pá
Navegar, navegar
Canta primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
algum cheirinho de alecrim



Não houve jeito, o episódio remeteu-me à grande festa popular quando da vitória de Lula nas eleições de 2002. Não havia mais ditadura a derrubar, ninguém em sã consciência acreditava em revolução; mas o povo brasileiro encheu-se da esperança de que algo podia ser verdadeiramente transformado, não somente a partir do estado, mas pela recuperação da auto-estima e da liberação do enorme potencial criativo da nossa gente.

É cada vez menos ocultável a nossa decepção, sobretudo com a falta da ousadia e da criatividade que julgávamos seriam as grandes armas de reconstrução da nação. Mas, confesso-vos, ainda guardo renitente um velho cravo para mim. Cá estamos carentes, é verdade, mas não é possível que não tenham esquecido uma sementezinha sequer n’algum canto de jardim...

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