quinta-feira, 15 de abril de 2004

"Posso me identificar?"


Serão impressionantes as cenas da violência no morro da Rocinha nos últimos dias? Sinceramente, conseguímo-nos ainda impressionar com a guerra que se incorporou definitivamente ao nosso cotidiano?

Talvez ainda nos impressione a trajédia “vista assim do alto” dos seiscentos mil assassinados em 20 anos, e dos mais de dois milhões de mortes violentas, encampados os números do trânsito e dos suicídios, em números oficiais do IBGE. Números eloqüentes de uma guerra que há muito deixou de ser surda.

A comparação com a guerra declarada no Iraque não é minha – é do JB de ontem – e nem é nova. Em 09 de abril de 2003, há exato um ano, escrevia um texto que republico abaixo, justamente traçando um paralelo entre a guerra de lá (então supostamente acabada...) e a de cá (no auge da onda de ataques das supostas milícias do tráfico às posições policiais). Mudem o “2003” pelo “2004”. O cenário desolador, desértico, é rigorosamente o mesmo.


E é por isso que concito vivamente os amigos do Rio de Janeiro, que encampem a idéia da manifestação de amanhã, sexta-feira (16/04), a partir das 14h00, no Largo do Machado, sob o eslogan “Posso me identificar?”. Trata-se de uma iniciativa de jovens lideranças de comunidades de várias regiões da cidade, chamando a atenção para o abandono e o descalabro em que suas vidas encontram-se mergulhadas, sem assistência médica, sem escola, sem trabalho, acossados pela violência social e pela truculência policial. Estarei espiritualmente presente, mas gostaria muitíssimo que muitos de vós me pudessem representar de corpo presente.


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Guerra nossa

Fernando Szegeri


Fui à rede esta manhã em busca de informações sobre o boato de fim da guerra na longínqua Bagdá. Mas meus caminhos detiveram-se no noticiário sobre mais uma madrugada de extrema violência nas ruas da cidade do Rio de Janeiro.

Este texto não almeja poesia, nem filosofia e sequer se propõe a instar a vossa comoção, é importante que isto esteja claro. É apenas uma conclamação a que deixemos de escamotear a evidência gritante dos fatos. Evidência que nos massacra ao destruir as representações de nós mesmos a que nos acostumamos - por motivos os mais variados -, impedindo assim que nos reconheçamos e, por conseqüência, possamos operar a distinção fundamental entre “o que somos” e “o que não somos”. Gostaria de que o lêsseis com a mesma serenidade grave de que tento me cobrir ao escrevê-lo.

Cresci acompanhado da idéia tão disseminada quanto difusa de que um dia “o morro desceria e não seria carnaval”. Assim como no samba, a idéia se manifesta socialmente de variadas formas: “isso aqui só vai ter jeito com uma revolução”; “qualquer dia que o povo se cansar, vai ser uma guerra civil”; e por aí. Concomitantemente, compartilhamos a convicção que “alguma coisa deveria ser feita”, que “essa situação não pode perdurar”, ou. que “o nível de nossa miséria é insuportável”. Entretanto, a idéia de transformação radical, de “revolução”, de “guerra” sempre esteve associada à de “redenção”, de triunfo das forças legítimas, de afirmação “da vontade do Povo”, do banimento das injustiças. Sim, o “Povo”, este estranho não-sujeito social, sem face, sem ideologia, sem contradições ou divisões, o escatológico messias salvador.

Mais do que gostaríamos de admitir, somos colonizados por um idealismo que enxerga a história caminhando para o triunfo da razão civilizatória, donde os momentos de barbárie nada mais são do que a necessária antítese a ser dialeticamente superada. Sempre senti que as idéias de falência geral, de guerra generalizada, de colapso absoluto não habitavam o conjunto das nossas representações do real ou do possível, antes figurando como uma espécie de anti-utopia, condensando a imagem do indesejável de maneira simbólica, mas não como uma ameaça real, numa espécie de adolescentismo psico-social. Porém, mais difícil do que incorporarmos a realidade da guerra civil deflagrada nas nossas ruas, por sobre paisagens que nos são tão caras e familiares, é encararmos que as armas tenham sido definitivamente empunhadas não pela mão redentora e mítica do “Povo”, em nome da Justiça, mas pela escória abjeta, dividida, contraditória, em nome da vingança e da destruição, ou em nome de nada. Não poderemos jamais encarar a realidade de que esta guerra não esteja orientada para instaurar a Civilização Justa, mas a barbárie completa, a destruição e a morte da sociedade.

Não há mais como e nem porque dourar a pílula de nossa triste realidade: a guerra civil está entre nós instaurada. Remeto-vos ao sítio virtual do jornal “O Globo On Line” e peço que compareis serenamente os fatos estampados nos noticiários de hoje com os dos conflitos congêneres mundo afora. Nas zonas norte e oeste do Rio de Janeiro, que representam a maioria esmagadora da área da cidade, há muito instaurou-se o toque de recolher, expresso nas favelas, tácito nas ruas. Ônibus e carros são atacados diariamente, assim como quotidianos são os ataques de milícias armadas a postos e guarnições policiais. Patrulhas são interceptadas nas ruas. O número de mortes violentas é estatisticamente comparável a zonas de conflito declarado. Não, não temos e não teremos centenas de milhares de tutsis, hutus ou curdos incinerados em poucos dias. Isto não tira de nossa situação o estatuto de guerra civil declarada.

Ora me direis nada lucrarmos com o reconhecimento formal da guerra, ou que meras rotulações não influenciariam no curso da realidade instaurada. Não creio. Há conseqüências desde jurídicas até simbólicas, todas permeadas pela indelével dimensão política. Entre as primeiras, notabiliza-se a possibilidade de decretação do estado de defesa, do estado de sítio e/ou da intervenção federal, todas medidas constitucionalmente previstas e harmônicas, malgrado anômalas, com os princípios do estado democrático de direito. Mas são os efeitos simbólicos que mais nos interessam. Quem sabe, pela primeira vez despojados violentamente dos andrajos ideológicos que desde sempre encobriram a escandalosa e impudica nudez moral de uma sociedade construída sobre a exploração exauriente da grande maioria por uns poucos, possamos enfim perfilarmo-nos para o combate, não contra um nosso semelhante, mas contra a própria guerra em si, alegoria pavorosamente real de nossa miséria.

(09 de abril de 2003)

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