sábado, 17 de abril de 2004


Há certa tristeza indizível e íncita que independe de específicos estares.

Essa tristeza perene que é a contraposição necessária do esplendor da vida e filha da finitude jaz subjacente em cada nosso movimento. E por estranha e magnífica confluência, expressa-se acentuadamente no mais íntimo de todas as manifestações genuínas do espírito brasileiro. “A tristeza é senhora”. E embora independa dos risos e sisos, manifesta-se positivamente na forma dessa nossa melancolia vaga.

A Floresta, em toda sua solidão imensa de rios e verdes sem fim, incorpora essa melancolia nos seus falares e cantares. O país e o mundo deslumbram-se com os róseos geraísmos, compreensivelmente. Mas um país que não olha seu umbigo não olhará jamais seus recônditos íntimos. A Amazônia é o sexo do Brasil, país mulher. O falar do caboco ribeirinho é o som mavioso que ecoa dos ocos férteis e olorosos, inebriantes.

E não se entendem sem um acostume. Iniciação é pouco. Pede-se uma dedicação, uma entrega, um sacrifício. Há que se navegar, e que se prosear e que se fumar, nas distâncias invencíveis, nos silêncios intermináveis.

E porque hoje as frutas e as linhas e o coração afloram-se-me rachados (e agora sabereis por que, ai!), ofereço-vos. Ela saberá. A mastigação é presente de sabiá-pai.

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Para a identificação gráfica da maneira de falar dos cabocos amazônicos, que misturam ao português termos de origem africana e indígena, originando sortidas formas de alterações fonéticas características, são aqui utilizadas de forma definida e diversa do original, segundo abaixo:

- o apóstrofe registra pronúncia sempre vibrante do “r” (herança tupi) . É também usado no início de palavras para indicar supressão de fonemas.

- trema expressa a pronúnica do “o” ou do “e” com seus valores originais e não os semi-vocálicos “u” e “i”

- repare-se a modificação do ditongo “ou” para um som localizável entre o “o” e o “u”, de difícil precisão




Fruta Rachada


(Walter Freitas e Joãozinho Gomes)


Më enveredu pula ‘ribêra
paresque inté pros Araguai-ai
mundo é tu quë leva as andadêra
‘strela dö Nor’te deitu, ai

me deixu fruta ‘rachada
im cada pé dë dur‘ cresceu
um araçá de cor morena ‘strada
Nas planta cá bem dentro d’eu

më enveredu pula ‘ribêra
paresque inté pros Araguai-ai
mundo é tu quë leva as andadêra
noite incendiada im nos arraiá

me deixú fruta ‘rachada
era os acúcar‘ dos biribás
‘strela do Nor‘te, manhã ‘raiada
‘scanchu-se fêmea nos ingás

Tambur truveja as bor‘dadêras
truveja, ê boi ‘relevantú
Perobo é quem xingu-me feia ê
Zé Breu bor‘da ‘strelas pro Nhô

Ar‘ruma Chica das Candeias
traz pinga, a tar‘ lá do Nestur
traz fita, traz muié festêra, ê,
depressa, onça inté já roncú

Pula patêxa du-te minhas mãos
vi num dos seios jor‘ro enfim ruim
ë o puço ‘stranho que eu não vi
fez ‘rio de mágoa n’água dë mim

Ai, ai, me beija pulo tudo amur‘
danei no mundo ‘sim que te per‘di
a fim do fundo o poço ë a dur‘
me dero abrigo ah sigo me vú!

Andu pur‘ tudas muitas léguas
meu cor‘po im mim num‘de avexar‘
meu cor‘po em flor‘ mur‘chosa aber‘ta ë
- três vez lembrei dos matagá

pavures im fina’r de festa
tremures dentro um temporá
dë puraqué de punho um resto, ê,
tar’vez me vor‘te a te encontrar‘

Pula patêxa du-te minhas mãos
vi num dos seios jor‘ro enfim ruim
ë o puço ‘stranho que eu não vi
fez ‘rio de mágoa n’água dë mim

Ai, ai, me beija pulo tudo amur‘
danei no mundo ‘sim que te per‘di
a fim do fundo o poço ë a dur‘
me dero abrigo ah sigo me vú!

‘scurume im nos meus alguidares
irapuru assubinhadur
vaçuncê tece as acanitares
aluá nö pote aluou

Se asserene mas se asserene
meu coração, sumano, cantur‘
dereiereiereieridene
amur, meu amur, meu amur

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Më enveredu pula ‘ribêra...essa toada de boi, de amor e despedida, abre mostrando os caminhos dos amantes que se separam

paresque inté pros Araguai-ai - o Rio Araguaia lastimado pelo amante que fica na imensidão de sua ribeira. Está perdida a amada.

‘strela dö Nor’te deitu, aiimagem que marca o tempo decorrido desde a partida, pelo movimento dos astros do céu

fruta rachadacrença bastante arraigada na cultura nortista de que a mulher, subindo em uma árvore, faz com que seus frutos passem a nascer rachados. Evidente louvação do sexo feminino e a influência que se lhe atribui.

im cada pé dë dur‘ cresceu – a transposição do movimento objetivo do crescimento da natureza, para a realidade subjetiva do amante abandonado, fornece a dimensão extra dessa relação do homem amazônico com a criação e destruição à sua volta.

Noite incendiadaintroduz-se a situação das festas juninas com suas fogueiras e arraiais, cenário da história

‘scanchu-se fêmea nos ingásmais uma vez a influência do sexo feminino sobre o abrir-se das frutas

Tambur truveja as bor‘dadêras tambores são as barricas usadas pelos tocadores de boi-bumbá. Os personagens animam os bastidores do terreiro empenhados em dar os últimos retoques nas inumentárias, nas músicas e nos demais detalhes da brincadeira. O boi se prepara para ir às ruas. O trovejo das barricas avexa as mulheres para que tudo fique pronto a tempo.

ê boi ‘relevantúo boi que descansa no meio do tambor (terreiro) levanta-se para brincar, tendo embaixo o “tripa”, figurante considerado “a alma” do bicho.

Perobofresco, viado, na linguagem caboca. Figura freqüente nas brincadeiras de boi, reagindo e dizendo que perobo é quem o xingou de feia.

Xingu-meo sotaque caboco transforma a palavra no nome do rio, reintroduzindo o tema da separação e da distância

Zé Breu bor‘da ‘strelas pro Nhôum homem borda estrelas para outro. Erotismo sutil subjacente no trabalho poético, retratando um elemento homossexual presente na brincadeira do boi.

Chica das Candeiasnegra cujo poder de iluminar as almas valeu-lhe o apelido.

onça inté já roncú - “onça” é a denominação da puíta ou espécie de cuíca usada nas funções de boi, de som grave e profundo como o ronco de um animal

Pula patêxa du-te minhas mãosa pateixa e umapeça de ferro, com três ganchos, usada para retirar baldes e outros objetos que caem nos poços. Comparação com as mãos do amante tentando resgatar a amada

vi num dos seios jor‘ro enfim ruimpara ela conta-se definitiva separação:o jorro dos sentimentos que se turvam e se transformam na dor da perda irreparável

ë o puço ‘stranho que eu não vi desse estranho poço que de repente se abre à sua frente brota um rio de mágoa

Ai, ai, me beija pulo tudo amur‘“esquematiza-se a seqüência de um dialogo. O homem volta a falar, embora os dois não se achem face a face. Ele tam,bém parte ao conhecer que a perdeu e acha abrigo na dor e no fundo poço de seus sentimentos. Abate-se o tempo sobre a história de amos dos dois: a memória e o próprio corpo em flor se desvanecem. Todos os pavores de um fim inexorável se realizam”

dë puraquê de punho um restoreferência a uma crença de que a introdução de um pedaço do rabo do puraquê no punho confere força descomunal ao indivíduo

‘scurume im nos meus alguidaresa mulher retorna à narrativa, assim como a calmaria ao quotidiano. Os alguidares escurecem-se pelo açaí ali batido, o pássaro canta, os ornamentos de cabeça (acanitares) voltam a ser tecidos, o aluá está pronto. A serenidade volta ao coração. Reforça-se o sentimento cíclico e de retorno tão presente na cultura amazônica.

Fonte: Disco Tuyabae Cuaá (1987) do compositor paraense Walter Freitas

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