segunda-feira, 15 de março de 2004

Aznar dele

Fernando Szegeri


O povo espanhol deu nas urnas a resposta que estava nas vontades de todo o mundo. O adesismo focinhante do fâmulo José María Aznar à paranóia mercenário-beligerante estadunidense mereceu a vergasta que todos os democratas gostaríamos de empunhar e que agora parte ao encalço da dupla B&B.

Ainda que fosse remotamente possível abstrair o horror insano do 11 de março, não creio que o resultado seria outro. A tragédia selou fatidicamente o desfecho da disputa, não só pelo repúdio ao terrorismo em todas as suas formas - incluído o apoiado pelo gabinete do PP espanhol no Iraque - mas sobretudo pela grotesca tentativa do governo de a todo custo responsabilizar o ETA pelo ataque em Madri, contrariamente às mais gritantes evidências. A mais básica delas parece que passou despercebida da maioria das análises (confirmando uma tese conhecida de Sherlock Holmes): qual interesse teria a organização basca de promover um atentado dessas proporções e não assumir (ou negar) a autoria? O significado político das ações do ETA reside unicamente na demonstração do que será capaz em caso de não atendimento às suas reivindicações. Um ataque anônimo absolutamente não faz parte do menu de atrocidades habitualmente oferecido pelos extremistas euscaros.

A insistente e inconsistente responsabilização do ETA pelo governo espanhol, assim, representou uma ignóbil tentativa de expiação de culpas, como se o premiê pudesse, com mais uma mentira, aliviar o peso que certamente lhe estará atormentando o sono bem mais do que a própria derrota. Não importa que vis motivações (econômicas ou políticas) tenham-no impelido ao seu lamentável apoio à recente invasão estadunidense ao Iraque. A incerteza sobre o nexo de causalidade entre seu ato e a absurda ceifa de tantas vidas humanas é certamente uma carga muito além do que qualquer espírito humano possa suportar. Mas o eleitorado espanhol não se deixou comover pela indigência humana do rastejante Aznar e aplicou, implacável e exemplarmente, a palmatória da democracia.

Aos grupos fundamentalistas partidários do terror interessa incorporar-se a dúvida aos efeitos das suas monstruosidades. Interessa-lhes que pese no espírito das vítimas a incerteza sobre motivações e autorias, para que se tema a todo instante, para que o pânico e a insegurança dominem os espíritos. Ninguém sabe quem será a próxima vítima, nem o local do próximo ataque, porque não se vê e não se conhece o inimigo, nem as suas reais motivações. Paira sempre a advertência diáfana aos que se contrapuserem às causas que elegem. Então, nas mentes tão dilaceradas quanto os corpos, viverá eternamente o terror.

Ao deixarmos nossos espíritos dominarem-se e acabrunharem-se pelo medo, porém, estaremos dando aos bárbaros a coroa de louros desta prova macabra. Não se pode deixar ofuscar a luz que brilha em cada um de nós, expressão ao mesmo tempo singular e universal do mais incrível fenômeno do Universo, sob qualquer ponto de vista que se encare: a Humanidade, esse impressionante coletivo que produziu todo um mundo de conhecimento, sabedoria e beleza, a despeito do mal que nos habita intrínseca e dialeticamente.

Irmãos espanhóis, europeus, iraquianos, afegãos, cubanos, africanos, estadunidenses e de todo o mundo, com o coração esmagado pela dor, pelo medo e pela dúvida, meu samba é a única coisa que eu posso vos dar:



Não tenha medo, amigo

Martinho da Vila


Não tenha medo, amigo
Não tenha medo
É, como falou o poetinha Vinicius,
"São demais os perigos dessa vida"
Mas o sangue borbulha nas veias
E eu tenho que andar na rua
Gosto de enfrentar o mundo cara-a-cara
Olhar as pessoas no olho
Tenho que estar nos botequins, nas favelas
Nos palcos, nas platéias
Nos campos, nas cidades, nos sertões
Aqui e acolá, como gente
Pés no chão, no meio do povo
Cautelosamente sem cautela
Receosamente sem receio
Distraidamente distraído
Mas sem medo

Não tenha medo, meu amigo, não tenha medo
Porque o medo é o seu maior inimigo
Admiro medrosos sem medo
Detesto valentes
De heróis desconfio
Do mundo eu não tenho medo
Mas viver a vida é um desafio
Não tenha medo
Não tenha medo, amigo

É, amigo
A vida é um segmento de reta sinuoso
Um vai-e-vem
Todo mundo tem que ser viandante
Pois "barco parado não faz frete"
- Tá lá nos caminhões
"Fé em Deus e pé na tábua"
Seguindo o destino
Moldando o destino, transando com ele
Sem medo do que você tem e do que você pode ter
Do que você é e do que você será
Vá em frente amigo
Amando a mulher amada
Dando amor a muitas mulheres
Caminhando em busca do infinito
Sem mitos, sem metas
Sem medo

Não tenha medo
Porque o medo é o seu maior inimigo
Não tenha medo de ficar doente
De ser impotente
Ou de levar um chifre
Confie no amor da amante
E na honestidade da mulher de casa
Não é mais tempo do duelo nobre
Ou de lavar a honra com florete ou sabre
Não tenha medo do clamor divino
E nem do capeta e seu inferno em brasa

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