O samba vive um momento privilegiado no que tange a visibilidade para o público em geral, o que implica em incremento do consumo (de discos, shows, rodas etc.) e conseqüente oferta de trabalho para músicos, autores etc. , salutar por todas as formas. Os que vivemos o dia-a-dia desse mundo, sabemos que assim foi em outras épocas, o que não impediu que sobreviessem fases de ostracismo e dificuldades. Com efeito, o samba nunca foi tratado pelos porta vozes a “oficialidade” como o patrimônio cultural fundamental do povo brasileiro que realmente é, muito pelo contrário. Aproveitam dele quando interessa e “dá retorno” depois encostam no canto até precisarem de novo, no melhor estilo “só na hora da sede é que procuras por mim” (salve Monsueto!). Afortunadamente, a fonte é tão caudalosa e arraigada no seio do nosso povo, que mesmo nos tempos de seca os cursos d’água minguam, mas não chegam a secar.
Essas fases de expansão do samba no mercado cultural, portanto, coincidem com uma aproximação maior das elites com o mundo do samba. Foi assim na década de 30, quando as classes médias passam a consumir o samba “dos morros” pelo rádio e pelo disco e impulsionam a explosão da popularidade das escolas de samba no carnaval. Foi assim na década de 60, quando o estreitamento do espaço cultural pela repressão e vigilância política impele a juventude da Zona Sul para as casas de samba e terreiros de escola no centro da cidade e nos subúrbios. Está sendo assim na explosão das rodas de samba pelas adjacências da Lapa carioca, pelo grande afluxo de público a casas “temáticas” voltadas para o samba na cidade de São Paulo, pelo enorme aceitação de Zeca Pagodinho até mesmo nas classes altas etc.
Mas, como dito acima, o “sucesso” nunca garantiu ao samba o reconhecimento efetivo e perene que ele merece enquanto expressão maior da especificidade musical brasileira. Ou seja, a expansão do consumo dos produtos musicais ligados ao universo do samba, por si só, nada garante relativamente ao histórico descaso e à marginalização marcadamente ideológica relativa ao gênero - comumente associado às classes baixas e à cultura negra (pejorativamente), quando não à malandragem e à marginalidade -, se não refletir uma efetiva formação de platéias aptas a compreender essa forma da arte musical popular do povo brasileiro como expressão maior de toda uma cultura, que traduz formas específicas de sociabilidade, comportamento, ética, visão de mundo etc.
Como sempre lembra mestre Nei Lopes, o samba é um saber iniciático, no que espelha inequivocamente, aliás, a matriz cultural africana. Não se compreendem seus significados, suas regras e sobretudo seus mistérios, se não se progride na experienciação paulatina desta ampla gama de sutilezas que permeia as relações, os rituais, os ambientes em geral desse universo.
Portanto, para que o samba possa aumentar o número de seus adeptos cativos, insusceptíveis aos ventos efêmeros dos modismos, é preciso que se ofereça a este publico que se aproxima do “produto final” do mundo do samba a procura de mero entretenimento condições para que ele compreenda os diversos outros elementos a envolver esta expressão cultural tão singular.
Talvez seja difícil precisar, no âmbito estreito da discussão que aqui colocamos, quais especificamente sejam estas condições, mesmo porque abrangem sutilezas cujo entendimento também pressuporia um grau de iniciação. Mas é possível identificar com maior facilidade, por exemplo, onde comparativamente estas condições estão mais presentes. Com efeito, nas rodas de samba que em São Paulo formaram-se em torno dos movimentos de valorização do samba tradicional, marcados duplamente pelo culto fiel às tradições e à memória do samba, por um lado, e pela valorização de novos compositores, por outro, observa-se a formação de verdadeiras comunidades, marcadas por laços de identidades sociais e geográficas, sim, mas sobretudo de devoção ao nosso ritmo maior.
Some-se a isso o espírito que tem norteado novas (e outras já não tão novas) iniciativas no circuito do samba paulistano e observaremos um cenário mais promissor, segundo a óptica que aqui buscamos adotar, do que no carioca, o que pode constituir curiosa inversão de uma tendência histórica. Ao circular por um circuito que ainda atrai, relativa ou absolutamente, um público maior do que em São Paulo, não tenho sentido predominar na mesma proporção as condições para formação de platéias que atravessem as meras tendências de momento. É sabido que as umbilicais ligações histórico-geográficas da cidade com o universo do samba, a identificação do ritmo como expressão natural e privilegiada do modo carioca de ser, o contato permanente com as tradições representadas pelos baluartes dessa cultura específica etc. facilita enormemente as coisas. Mas é essa mesma naturalidade que pode, paradoxalmente, vir a tornar mais difícil a percepção a que me refiro, isto é, da ausência de condições para um envolvimento mais substancioso e, por conseqüência, mais perene com o gênero.
Como se trata de uma percepção subjetiva difícil de justificar precisamente, só o tempo a confirmará ou desmentirá. Alertando, estou tão somente buscando cumprir mais fielmente meu papel de elo transmissor da tradição que recebi dos antigos e pretendo legar aos que vierem depois. Compreender-me-ão os iniciados.
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