quinta-feira, 22 de janeiro de 2004

Poeta da MPB

Fernando Szegeri


"Esse é um disco sem parceiros.
Porém, todos eles, no fundo, estão aqui junto comigo."
(Paulo César Pinheiro)


Venho sorvendo, há umas duas semanas, "O Lamento do Samba", disco "solo" do poeta Paulo César Pinheiro. Sim, porque "compositor" não define propriamente esse artífice de significantes e significados, muito embora aqui esteja mais do que nunca investido dessa titularidade, unindo melodias próprias às costumeriras letras magistrais, função já desempenhada por tantos cracaços da música brasileira de várias gerações. Um bardo que tem sobre os seus pares a vantagem e a responsabilidade adicional de acoplar aos veios de sua lavra poética as preciosas sonoridades do universo da canção brasileira e, mais especificamente, do samba. Porque se, por uma, a exigência sonora impõe determinantes tão específicos ao talhe poético, por outra, as palavras se podem aproveitar de um veículo com trânsito tão privilegiado na sensibilidade dos destinatários. Fico, portanto, com "Poeta da MPB", tal como se assina mestre Aldir Blanc, companheiro do nono círculo da criação poética musical, com mais uns dois ou três serafins.

Todos os sambas do disco evocam aquela tristeza que eu costumo chamar "necessária", a que não podemos evitar e decorre naturalmente da beleza da vida em si e da nossa condição efêmera, transitória. Dessa tristeza nasce o samba, como imortalizaram Vinícius ("Pra fazer um samba com beleza / é preciso um bocado de tristeza") e Caetano ("A tristeza é senhora / desde que o samba é samba é assim"), descendente do canto banzeiro do negro expatriado e escravizado. Os títulos das faixas dão o tom: "O Lamento Do Samba", "Amor Ausente", "Fechado Por Dentro", "Samba De Tristeza", "Meu Sofrimento", "Quando Eu Me For"... São lições sobre o amor, o tempo, a velhice, a morte, a saudade, o sofrimento... A vida, enfim! Do mais alto de sua plena consciência artística, na esteira dos maiores, o Poeta realiza esteticamente ao longo do disco o verdadeiro manifesto anunciado na faixa-título:

"O que falta pra quem faz um samba
É a trsiteza que vem de outro tempo
Quem não sabe a ciência do samba
Vai fazer o que pede o momento
O segredo da força de um samba
É a vivência do seu fundamento
O que faz ser eterno um bom samba
É a beleza que tem seu lamento"

Essa vivência do fundamento do samba é o que permite a Paulo César Pinheiro, especialista das letras, criar melodias tão ajustadas à beleza do texto poético. Tal como anuncia na contra-capa citada acima, os seus parceiros estão presentes nas sonoridades dos diversos sambas. Por vezes quase se consegue ouvir a voz de João Nogueira; estão lá as cadências de Mauro Duarte, os lamentos melódicos de Batatinha e as africanidades de Baden. Muito, creio, porque esses tanto imprimiram seus traços determinantes na expressividade sonora de sua poesia; muito por tantas vezes seus motivos e intuições melódicas terem servido de pontos de partida e orientadores para os parceiros.

O disco se efetiva magistralmente pela dolência de sua voz rouca, pelo belíssimo projeto gráfico e, sobretudo, pelos felizes arranjos de Maurício Carrilho e mãos tão certeiras como as de Wilson das Neves e Pedro Amorim, entre tantos craques. Se é certo que meus ouvidos de samba por vezes acabassem por pedir um peso maior nos tambores – esses também evocativos e tradutores dessa "tristeza que vem de outro tempo" - , a delicadeza do instrumental acabou por valorizar, na medida adequada ao caráter do disco, a força do conjunto letra-melodia. Arrebatados, enfim, pela pujança dos sambas que desfilam por cinqüenta e tantos minutos, cabe-nos reproduzí-los pelas nossas rodas e quintais com todo mocotó e batida de limão que se fizerem necessários.

Enfim, se parceria fosse sexo, Paulo César Pinheiro seria a maior puta da música brasileira, como quis certa vez o compositor Dori Caymmi. Neste disco, então, ele está batendo uma punhetinha com toda a competência. E nós é que gozamos.

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