terça-feira, 27 de janeiro de 2004

Cultura de churrascaria

Fernando Szegeri


Dois episódios na mesma semana passada.

O primeiro no esfuziante espetáculo de Dorina, Moacyr Luz e mestre Wilson Moreira, no Sesc Pompéia. O projeto se chama "Samba da Gema" e visa justamente trazer figuras expressivas do samba carioca a São Paulo nesse mês de janeiro. Moacyr, que já havia prestado uma homenagem a Cartola e à Mangueira, começava a contar uma história vivenciada ao lado do saudoso João Nogueira, naquele seu jeito de nos colocar como se estivéssemos em sua sala de visita, tão elogiado na temporada que atualmente faz no Canecão do Rio. Quando, no meio do silêncio atento que se fazia, um gênio da raça grita lá do fundo: "Fala de Adoniran Barbosa, que é paulistano!". Resultado: Moacyr não terminou de contar a história.

O segundo. Nas quintas musicais do Banco da Amazônia (sobre as quais parece que ainda muito hei de falar por aqui), no mesmo Sesc Pompéia. O jovem guitarrista/violonista paraense Gileno Foinquinos já havia feito belíssima apresentação. A mineira Consuelo de Paula entrara na seqüência com lindo espetáculo, evocando de uma maneira muito própria sonoridades de sambas antigos e congadas mineiras. A apoteose da noite viria com a apresentação de um dos gênios do violão nacional, o também paraense Sebastião Tapajós. Tentando ouví-lo, mudei de lugar no Sesc quatro ou cinco vezes para tentar não me indispor com os presentes que conversavam como se estivessem numa churrascaria rodízio. Até que não teve jeito.

Sebastião Tapajós dá anualmente concertos em temporada pela Europa, onde as pessoas pagam 30, 40 euros para assistí-lo. Em teatros ou em bares, o respeito pela arte do músico é absoluto. A música é soberana. O Banco da Amazônia traz, portanto, um concertista internacional para se apresentar a um público que não tem condição de pagar o que ele cobraria, subsidiando o espetáculo. As pessoas ali pagavam apenas um quilo de alimento para a campanha contra a fome. Tenho certeza que se ele estivesse se apresentando em uma favela, o respeito por sua arte seria total. Mas a classe média paulistana, cheia de informação e carente de cultura acha que pode ir bater papo no Sesc e ter "música ambiente" ao vivo. Ou então se arvora no direito de ditar o repertorio do show, porque, afinal, se eu paguei, posso fazer o meu pedido, como em qualquer churrascaria que se preze.

Essa cultura do "eu estou pagando" infelizmente é difundida (não só, mas especialmente) pelo paulistano em todos os lugares por onde passa. Não sei se fruto da mentira indefinidamente repetida de que São Paulo carrega o país nas costas, que escamoteia as relações de opressão e espoliação que possibilitaram a concentração do capital na região sudeste. E violenta barbaramente relações sociais construídas em outras bases que não a do "quem paga tem sempre razão". Por isso, em parte, desafortunadamente assistimos a degradação de tantos lugares preciosos deste país, cujas estruturas comunitárias foram estupradas pela lógica estúpida do dinheiro, como recentemente narrou minha madrinha Christiane Assis Pacheco no ótimo texto "Trancoso, SP".

Não adiantam comemorações ufanistas e pesquisas colhidas nas barbas do pão e circo dos 450 anos. A burguesia da cidade de São Paulo precisa urgentemente sair do discurso à prática e parar de negar o Brasil.

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