quarta-feira, 28 de janeiro de 2004

Luz

O ano era 1998 ou 99. O local, o pequeno Villaggio Café, durante muito tempo a embaixada da boa música carioca na cidade de São Paulo. Tendo conhecido dois belíssimos sambas seus, fui para tirar a prova dos nove, conferir quantas garrafas vazias mais teria aquele compositor pra vender. E acabei descobrindo, além de um grande e inesperado violão, que o manancial do qual haviam brotado “Saudades da Guanabara” e “Flores em Vida” formava uma torrente caudalosa a misturar melodias sutilíssimas e chamamentos africanos de forma absolutamente arrebatadora. Naquela noite de sábado brotaram os germes do que viria a ser para mim um grande encontro - e não só musical, pelas fortunas ditosas com que a vida nos presenteia. E esse encontro obriga-me a um testemunho.

Além de um criador talentosíssimo, Moacyr Luz é um contemplativo da existência. Não a abstrata sobre a qual se filosofa nas academias, mas aquela que se constrói na realidade das nossas ruas e casas, nossos abraços e palavras. Na sua enorme sensibilidade encastelada em cabeleiras e barbas, percebe e reconstrói o entorno de sua rua, seu bairro, sua cidade, de onde brota a força de sua arte e o substrato de sua maneira de existir. Descobridor do encontro como a liga que amalgama esse jeito tão particular de ser e estar no mundo, torna-se o elemento aglutinador de uma resistência do jeito carioca de ser. Como se o tempo desligasse sua draga avassaladora, sua casa é a de Aníbal Machado. O Bar da Maria é o Antônio’s. Em torno dele reestruturam-se encontros memoráveis: Manoel Bandeira e Di Cavalcanti; Vinícius, Rubem Braga e Dorival Caymmi; Aracy de Almeida, Cyro Monteiro e Antônio Maria; Aldir Blanc, Martinho da Vila e Paulo César Pinheiro.

Reacendendo a dimensão épica de um elemento corriqueiro e cotidiano da (nunca desaparecida) resistência carioca, Moacyr, sem intencionalidade, no exercício estrito da expressão de seu modo de ser, acabou atraindo holofotes sobre sua rua, sua casa, suas comidas. A cada disco lançado, histórias do bar, dos encontros, dos personagens. A cada entrevista, uma receita. A lógica normal da vida e das coisas deveria fazer com que a obra fosse, de um artista, aquilo de mais conhecido e apreciado pelo público em geral, ficando as histórias que lhe cercam a cargo da narrativa dos que logram partilhar algo além de suas criações. Mas, por um daqueles elementos imponderáveis que fazem a nossa existência quase tão interessante quanto uma partida de futebol, com ele parece suceder o contrário. Por isso, exatamente, meu testemunho aqui não é acerca das muitas e maravilhosas passagens que tive a felicidade de presenciar e compartilhar, mas para afirmar sem medo de errar: Moacyr Luz é um dos maiores compositores populares do Brasil.

Seu primeiro disco tem 15 anos. Depois dele, mais quatro, um deles interpretando somente sambas de outros autores. Nessa trajetória, pode-se sentir tanto a consolidação de um estilo, como o progressivo equilíbrio das tendências que se mostraram mais pujantes em determinados momentos. E, sem dúvida, um pendor crescente para o samba. Seja executado “nas regras da arte”, com a autoridade que as batucadas lhe conferem, como neste recente “Samba da Cidade”; seja na sutileza de violões e pandeiro, como em “Na Galeria”, de 2002.
Não é pouco numa cidade com o patrimônio musical do Rio de Janeiro, cantada em prosa e verso, com hino oficial consagrado pelo canto popular (“Cidade Maravilhosa”, de André Filho), inscrever um gol de placa tido como “hino não oficial” da cidade, a já citada “Saudades da Guanabara” (com Aldir Blanc e Paulo César Pinheiro). Ou pintar, com perfeição indefinível, o retrato sonoro do anjo-ídolo Zeca Pagodinho. No disco recém-saído, Moacyr emplaca mais um clássico, desta vez ao lado do mestre Martinho da Vila: “Vila Isabel”. O bairro já foi mais que festejado, desde que Noel o inscrevera definitivamente na geografia musical do então Distrito Federal. Mas foi necessária a melodia de Moacyr Luz, a despertar os versos inspirados do poeta da Boca do Mato, para que a Escola de Samba Unidos de Vila Isabel recebesse o seu samba definitivo. Sim, porque para ela estará como “Passado de Glória” (Monarco) está para a Azul-e-Branco de Oswaldo Cruz, ou “Exaltação à Magueira” (Enéas Brites da Silva e Aloísio Augusto da Costa), para a Estação Primeira. Ouçam, simplesmente!

Moacyr Luz, compositor de algumas das mais belas canções que ouvi, vai inscrevendo, assim, seu nome na constelação dos grandes bambas que fizeram do samba o gênero mais expressivo da música popular brasileira. Por isso desfilam no disco recente parceiros como Nei Lopes, Wilson Moreira, Paulo César Pinheiro, Luiz Carlos da Vila e Wilson das Neves, além dos já citados Martinho e Aldir. Não tenho dúvidas de que essa proeminência que o samba assume no atual estágio de sua obra tenha relação direta com o locus privilegiado onde se encaixou no quebra cabeça da cultura carioca. Ao cada vez mais amalgamar sua própria figura pessoal e artística com as expressões mais candentes da cidade do Rio de Janeiro, seria natural que a forma musical maior dessa cultura passasse a dominar sua criação. Moacyr foi gradualmente passando da condição de compositor de sambas, como às vezes ele mesmo se define, à de um autêntico sambista, na definição maravilhosa de José Sávio Leopoldi (Escola de samba, ritual e sociedade, Petrópolis, Vozes, 1978, p. 41):

O aspecto crucial para a caracterização do mundo do samba é justamente a contextualização dessa expressão musical, isto é, a determinação de seu significado enquanto produto que transcende a individualidade e se identifica com o ‘ethos’ de um grupamento social específico. Esta colocação nos permite, por exemplo, distinguir um agente do mundo do samba – um sambista – de um compositor qualquer (de outros grupos sociais) de sambas, pois, enquanto aquele possui o sentimento de se definir coletivamente em função de sua relação com o mundo do samba, isto é, que o percebe como um elemento significativo no conjunto de relações que vivencia, para este o samba é expressão da criação artística individual... Importa, portanto, destacar que o sambista participa de uma rede de relações consubstanciadas pelo significado que o samba assume enquanto categoria valorizada coletivamente e, em conseqüência, como elemento estratégico de definição de seu universo social.

Moacyr é isso. Aí vai, pois, o meu apelo – posto que não sou eu quem reúna condições para fazê-lo – a quem se debruce sobre sua produção de maneira condizente com a qualidade de sua obra e o caráter ímpar de seu estilo; e a sambistas, sambadores e amantes da música brasileira: Moacyr Luz – quem tem ouvidos para ouvir, ouça!

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