sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Arminto




No começo, me pelava de medo; e talvez seja das minhas memórias mais remotas, pois que ainda mal me livrara dos cueiros… E essa paúra tinha – vejam vocês! - um único e mais que suficiente motivo: o bigode. Naquele tempo, ainda era o Tio Bipe - apelido cuja origem nunca cheguei a entender – o que facilitava pra gente, porque o nome mesmo nunca soube designasse algum outro ser humano sobre a face da Tera: Arminto. Maceno da Silva, sim senhor.

Desses primeiros convívios ficaram além das lembranças do medo e do apelido, o Simca Chambord dourado que não vi ninguém mais ter e as idas para Santos pelo Caminho do Mar. A vó aproveitava pra espetá-lo, explicando que o desprezo pelo conforto da Via Anchieta era pra não pagar o pedágio; mas hoje eu sei bem sabido que ele não dispensaria por nada aquela visão do mar do alto da Serra… E do resto da vida ficaram o seu charme irresitível, o bom humor invariável, a risada sempre farta. Uma piada sempre na ponta da língua, via de regra obscena, que levei tempo pra começar a entender. Imbatível nas festas da família, bom bebedor, lábia que não conheci igual. Na mesma medida que desapegado, como bom malandro, dos limites moralistas da propriedade privada, estava sempre disposto a servir e amparar a quem estivesse em condição difícil, fosse parente, vizinho ou só estivesse passando na rua, qualquer hora do dia ou da noite. Noite na qual imperou sem rivais nesta Cidade de Piratininga, é o que se conta, com tratamentos a altura de sua condição majestática onde quer que pisasse. Quem viu ainda dá testemunho, Com meus próprios olhos, mesmo, só vi uma vez, no saudoso Pena Dourada, já no time dos veteranos, bastante alquebrado pela idade e a cegueira: e deu aula!

Sempre demonstrou gostar de mim como um filho. Virava e mexia se botava a morar em lonjuras mineiras ou sergipanas, exercendo então seu indefectível carinho com telefonemas sem nenhum propósito além de trocar uns dedos de prosa e amenizar a saudade. No finalzinho, na tentativa de preencher um tico a escuridão que nele já se fazia completa, arranjei-lhe um “walkman” e umas dúzias de fitas cassete que enchi de serestas, sambas e choros dos muitos antigamentes. A beleza dessa e daquela canção, uma particularidade na melodia ou uma história que lembrava viraram temas prediletos dessas nossas tertúlias à distância, que por isso mesmo acabaram ficando bem mais frequentes. Nessas também, quando minha mulher atendia o telefone, aproveitava pra sacudir a poeira e botar em prática a velha prosa de mel, num tanto que ela até hoje se derrama de amores por ele. Que partiu sem que nunca chegassem a se conhecer pessoalmente - num dia em que chorei como filho.

Hoje, completados 100 anos de seu aparecimento neste planeta (se não erro nas contas), ergo no balcão imaginário, como diria o mano Edu, um copo cheio de lembranças, saudades, delicadezas e canções, rescendendo à cerveja do bigode e a linguiça na brasa! Chama Tio Arminto!

Um comentário:

  1. Volta a escrever, Fê! Estamos precisando de tudo o que estiver ao alcance, neste momento, para desopilar.E você é um mestre nisso.

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