terça-feira, 1 de abril de 2008

A menina Josephina


Josephina é uma menina.

Conheci-a há muito, muito tempo, quando eu também era menino. Eu deixei de ser menino, mas não Josephina.

Nasceu num 1º de abril, mas não é de mentira.

Sendo muito menina e há muito tempo, Josephina viu muitas coisas na sua longa vida de menina.

Josephina sempre foi a alegria da família. Nenhuma festa tem graça sem ela. Sem os ovos coloridos que ela gosta, na Páscoa; sem a árvore gigante que ela faz questão de enfeitar com velinhas e acender na noite de Natal. Festa é com ela, a Josephina. Quando vê todo mundo junto, a casa cheia e a mesa com muita e muita comida, brilham os olhinhos pequenos e acinzentados de menina.

Josephina tem as bochechas mais gostosas de apertar e as mãos mais macias e geladinhas, mesmo com tanto tanque e tanta roça.

Ela fala assim engraçado, umas palavrinhas bonitinhas... “Semvergonho!”, quando uma outra criança apronta uma coisa que ela acha, assim, de criança. Um dia, no jogo de forca, ela escreveu a palavrinha “barigudo” e as outras crianças que nós éramos demos risada dela.

Josephina parou de ir à escola, porque precisa cuidar dos irmãos mais novos, quatro fora ela. A professora não queria que ela fosse embora, mas ela tinha que cuidar dos irmãos e também tinha que trabalhar. Sempre precisa cuidar – e cuida – de todos. Da Elza, da Gabriella, do Lourenço, do Ernesto, da Hilda, do José grandão e do José Pequeno, da Walburga grande, da Cecília, do Germano, do Frederico, do Fernando, da Cristina, da Paula, da Elizabeth e da Verônica e da Valburga pequena, da Glória, dos filhos da Glória, da Iara e da Rosa.

E porque havia um Oceano esperando por Josephina.

Mas Josephina gosta de ler, de ler e de ler. Trabalha o dia inteirinho, roçando, lavando, cozinhando, cuidando dos bichos e dos meninos; e à noite, em vez de dormir, fica lendo e lendo e lendo. A luz da vela não é muita e o pai de Josephina briga com ela porque vai estragar os olhos. Mas Josephina é a mais teimosa de todas as meninas. Quando o sol já vai raiar, toma um banho gelado e vai fazer o café e vai pra roça e vai cuidar de todo mundo e vai lavar sua roupa.

Josephina me ensinou a gostar de ler e de viajar. Diz que, no fundo, é a mesma coisa. Gosta mais de ler sobre “o costume dos pôvos”. O chapeuzinho é para mostrar como é bonitinho o jeito dela falar. Mas não adianta muito.

Josephina tem um cheirinho de água de colônia. E o quarto secreto de Josephina tem esse cheirinho também. Mas é misturado com o de açúcar e arroz e feijão e óleo de cozinha que ela guarda lá, porque é uma menina que viu a guerra e a fome. E não gosta do frio, nem da guerra, nem da fome. (Pensando melhor, o quarto de Josephina tem cheiro de motor de máquina de costura também.)

Todos tocam a campainha na casa de Josephina. Os mendigos gostam dela. E os cegos, os sem mão, os muito pobres, os doentes. Porque ela sorri para todos. Sempre tem um pedaço de pão e uma xícara de café.

Josephina, como toda menina levada, não gosta de ir à igreja. Ela gosta de jogar cartas (como rouba, a Josephina...!) e fazer palavras cruzadas. Me ensinou a jogar, pra ela ter sempre alguém pra jogar com ela. Me ensinou a jogar sempre para ganhar, mas também me ensinou a perder. E, assim, nós sempre jogamos os jogos mais divertidos. Mamãe não gosta muito, mas a gente joga mesmo assim.

Josephina é menina, mas faz as comidas mais gostosas pra todo mundo comer e fica feliz quando vê todos bem gordinhos como ela. E faz bonecas pra gente brincar e roupas para as bonecas e para nós. Fez até um monte, mas um monte de quadradinhos coloridos, que depois ela ficou costurando uns nos outros até formarem várias mantas coloridas pra cada uma das outras crianças. Quando acabou de costurar todos os quadradinhos, ela ficou cansada e foi embora.

Josephina faz as comidas que todo mundo gosta. Mas ela mesma gosta de café com leite. Hoje mesmo dividi meu café com leite com ela e sei que ela ficou feliz. (Ah! De noite nós vamos dividir uma água tônica.)

Ia contar um segredo de Josephina, mas não vou contar, porque senão não é segredo. Se a Iara pedir, conto no ouvido dela, porque sei que Josephina não vai ficar brava.

Josephina é brava!

Josephina nunca, mas nunca se queixou de nada na vida. Sempre está alegre e ri uma risada gostosa com as mãos na barriga que balança muito quando ela ri: “Non me faça rir...” E segura o barrigão! Só ficou doente uma vez.

Josephina faz, no dia de hoje, 99 anos. Falo com ela todos os dias. Quando a Rosa chora muito e não quer dormir, eu sempre chamo Josephina. E a Rosa se aquieta. Quando a Iara fica dodói, peço pra ela cuidar da Iara. E ela cuida. Faz também hoje treze anos, três meses e cinco dias que eu não consigo enxergá-la, por alguma artimanha sua que ando tentando descobrir.

2 comentários:

  1. Anônimo1/4/08 13:01

    Ontem no trabalho contei algumas das coisas que vc escreveu pros meus amigos por causa do dia de hj. Como e porque ela foi pro Brasil, do que passou na Austria quando pequena, do café com leite, agua tonica,das bonecas, das palavrinhas engraçadas...
    Semana passada em meio ao sufoco pra poder refazer meu passaporte austriaco aqui na Italia, pedi a ajuda dela...e tudo se resolveu.
    Coincidentemente eu e a Kika fizemos hj as contas de quanto tempo estamos sem ela, e me lembro que quando era pequena estar sem ela me parecia impossivel ja' que ela era a chefa da familia e sua força me dava a impressao que estaria com a gente pra sempre!
    Bem...ela estara' com a gente pra sempre nas nossas lembranças de crianças sortudas por ter tido e aprendido tanto com a melhor avo' que alguém jamais pensou em ter.
    Fe, so' vc mesmo pra escrever um texto tao lindo e deve imaginar o quanto me emocionou. Obrigada, querido.
    Beijo,
    Fo'

    obs.um dos meus amigos, que é uma pessoa linda e doce, me disse pra hoje eu "telefonar" pra ela la' no Céu pra dar os parabéns, pq ela vai me atender e vai me ouvir. E eu sei que vai.

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  2. Meu Deus, a estragou tudo...

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