quinta-feira, 14 de junho de 2007

Outras paradas


Domingo passado, enquanto uma banda da cidade parava a fortiori em função do já tradicional desfile junino desta Capital (sobre o qual não comentarei por razões que também aqui não cabe escarafunchar), euzinho, que não sou lagoa pra esfriar bunda de pato, derrotava ampolas “mofadas” bem longe, mas bem longe mesmo dali, em companhia de figuras legendárias desta Cidade verdadeira, que não se rende e se recusa ao travestimento que vivem a lhe querer impingir.

Longe do “carnaval”, da pantomima, do furdunço, o que a gente encontra é a velha camaradagem, rapaziada bebendo na padaria (hábito dos mais paulistas), porque o dono do butiquim também é filho de Deus e a vida não é mole, não. Se não há mesa, não tem problema, porque o pessoal ao lado tá com duas, por que não ceder a que sobra? Apertam-se os copos, “leva aqui, Manoel”, as vazias vão pra o engradado. De cara, uma São Francisco pra garantir a generosidade dos propósitos, a garganta estava mesmo pegando um pouco. Petisco não, porque as senhoras nos aguardam para os respectivos repastos dominicais.

E tome prosa, comandante Deco à minha frente. Ali é só sorriso, é papo da melhor qualidade, é história que não dá vontade de largar. Ao meu lado, a cadeira vazia esperava “Seu” Juracy, que ficou pra trás de conversê com o jornaleiro. Pudera.

“Seu” Juracy foi durante quase três décadas dono da melhor banca de jornal da Avenida Paulista, da qual fui cliente - por só ali encontrar diariamente os jornais dos quatro cantos do Brasil – muito antes de desconfiar que seu filho era o maior amigo-irmão-de-infância da mulher que mudaria minha vida. Conhecido por não se intimidar com as ameças contra os jornaleiros que insistissem em vender ostensivamente jornais da chamada imprensa alternativa, entre os quais o Pasquim e os antológicos Opinião e Movimento (“quanto mais ameaçavam, mais eu pendurava bem na frente, pra todo mundo ver”), protagonizou inacreditáveis histórias. Como nas noites em que tinha quee dormir na calçada, disfarçado de mendigo, barba comprida, esperando a turma que andava explodindo as bancas (lembram?), na companhia fiel do “maior 38 de que se teve notícia na História”, segundo Deco. A confiança no parceiro tem razão de ser: sargento da Marinha de Guerra Brasileira por vinte anos, com 78 primaveras nas costas se gaba: “Ainda hoje, com a vista meio cansada, se eu errar aquele poste ali [a uns 30 metros da mesa onde bebíamos], meto uma bala na cabeça!”

Oposto ao meu corner, o grande carioca Jayme Leão, uma das maiores feras da ilustração brasileira, cartunista e capista consagrado, traço inconfundível que a gente vive a esbarrar de repente em uma página virada em publicações tão diversas como uma Caros Amigos, uma Playboy, uma Você S.A.; ou em capas de dezenas e dezenas de livros que fizeram parte da vida literária da minha geração, como as coleções Vagalume e Para gostar de ler (lembram?), editadas pela Ática. Como cartunista fez parte da geração de craques surgidas a partir dos já citados jornais Opinião e Movimento, ao lado de nomes como Angeli, Laerte, Loredano, os irmãos Caruso, Liberati, Zero, tendo mais tarde colaborado regularmente por alguns anos na Folha de S. Paulo. Empedernido ativista político, teve de exilar-se no Chile onde pôde ver de perto o governo socialista de Allende. Stefânia, Capitão Léo, Deco, os de minha geração que cresceram próximos a ele garantem: foi o exemplo formador de consciência crítica e resistência militante.

Histórias mil, cervejas muitas, bem do outro lado do Tietê. Resistência de verdade, História de verdade, numa Cidade de verdade. Mas há quem prefira a Avenida Paulista. Parada.

5 comentários:

  1. Estou para dizer que este foi um dos melhores textos que li de sua pessoa!

    ResponderExcluir
  2. Grande camarada Szegeri,

    este é o verdadeiro combustível que nos faz seguir adiante. Casos simples mas verdadeiros da vida, e tão cheios de sentimentos que chegam a ser inequecíveis.

    Beijo grande irmão, acabo de voltar do Joaquim, preciso beber com você novamente...

    ResponderExcluir
  3. Fê, eu sabia que esse texto viria. Bem que você disse: "Que Domingo! Que Domingo!". Coisa linda.
    Beijo.

    ResponderExcluir
  4. Excelente. Parece a São Paulo idealizada da minha infância, onde todo mundo morava em casa na Vila Madalena (não tinha prédios) e sempre tinha uns velhinhos tomando cerveja quando eu ia comprar pão para minha mãe.
    Siga essa linha, há muito para dizer sobre a terra da garoa.

    ResponderExcluir