terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Negação do Carnaval

Não põe corda no meu bloco
nem vem com teu carro-chefe
não dá ordem ao pessoal
Não traz lema nem divisa
que a gente não precisa
que organizem nosso Carnaval

(Plataforma, samba de João Bosco e Aldir Blanc)

Semana passada publiquei aqui um excelente texto do grande Plínio Marcos, conhecedor mais do que autorizado das coisas do profícuo carnaval que se fazia por estas cada vez mais desalentadas plagas, assim como de tantas coisas mais dos nossos pouco visíveis subterrâneos que ele tão apropriadamente batizou de “quebradas do mundaréu”. Pois bem, hoje completam-se exatos trinta anos de publicação do artigo, e é estarrecedor perceber sua brutal atualidade, numa cidade onde absolutamente nada se conserva, em que tudo está em permanente estado de transição. E, normalmente, para pior.

A genialidade do dramaturgo santista percebe e mostra com a força de sua verve o que toda a teoria não é capaz de tão direta, tão claramente exprimir. O dedo do poder (político, econômico) tende sempre a destruir as manifestações mais genuínas e mais expressivas do povo, essa entidade mítica onde se encontram e se articulam os diversos indivíduos e a coletividade. E isso por uma razão bem simples. Essa expressão da subjetividade popular pressupõe espontaneidade, diversidade, singularidade, integração. E essa outra instância de mediação entre os indivíduos chamada “poder” (ou “sistema”, se preferirem) baseia-se opostamente em planejamento, planificação, homogeneização, formalização, separação. No Brasil, desde o Estado Novo, percebeu-se claramente que para conter os demônios incontroláveis e transformadores que se espalham todas as vezes que o povo manifesta livremente sua alma criadora, é muito mais fácil, mais eficaz e menos traumático organizar do que reprimir. E assim se fez, reiterada e seguidamente com as mais pujantes formas expressivas do carnaval brasileiro, sendo o exemplo das escolas de samba o mais evidente apenas.

Essa promiscuidade destrutiva das expressões populares com o poder constituído não é só obra do apetite voraz do sistema, esse buraco-negro que tudo quer tragar para sua órbita inarredável, tentando prender toda complexidade e toda espontaneidade à previsibilidade de suas categoriazinhas determinadas e determináveis de antemão. É fruto também de um desejo e uma busca, no mais das vezes muito legítimos, pelo reconhecimento do valor destas manifestações perante as estruturas “oficiais”, o que se pode interpretar como uma tentativa de fazer valer para fora dos ambientes originários os mesmos padrões de valoração, de intermediação, de sociabilidade ali encontráveis. Traduzindo com exemplo: no ambiente da escola o bamba é aquele que melhor dança o samba, que é imbatível no verso de improviso, que domina com maestria os diversos instrumentos etc. O valor que lhe é atribuído tem uma conotação meritória, muito diferente das atribuições de valores na sociedade “civil”, determinadas por uma infindável série de pré-definições alheias e anteriores ao indivíduo propriamente: onde nasceu, de qual a família, qual a cor da pele etc. Isso, claro, porque é nesta dimensão “civil” que se travam as batalhas do dia-a-dia, a luta pela sobrevivência tanto material quanto simbólica e é nela que se experimenta a violência de um sistema informado pela desigualdade, apartação, apropriação. O bamba que é reconhecido e tem lugar de destaque no seio da sua comunidade pelo seu valor, quer que esse valor lhe sirva minimamente para reconhecimento também na sociedade “civil”. Nem que seja por três dias no ano. E nessa busca tão legítima quanto ingênua, ele, normalmente, se estrepa: perde o que tem e não alcança o que almeja.

Por isso lanço aqui, na contra-mão do que postula meu amigo Paulo Eduardo Neves, a campanha: prefeitura do Rio, governantes em geral, peloamordedeus, fiquem bem longe do Bola Preta, deixem o velho Codão em paz!!! Eu sei que minhas amigas vão reclamar e dizer que só digo isso porque não sou mulher, mas eu afirmo que sei bem o que vocês sofrem. Ninguém precisa de sinalização! Ninguém precisa de banheiro! O Cordão sobrevive assim há noventa anos, graças aos butiquins, matinhos, carros estacionados e toda espécie de peripécias e artimanhas. E afirmo, mais uma vez, com a autoridade de dezoito carnavais, com as cicatrizes deixadas pelos tamancos, com a moral de quem já passou mal um sem número de vezes apertado em fantasias improváveis: há que se sofrer! Carnaval é, acima de qualquer coisa, sacrifício.



"O que não tem, até o que tem lhe será tirado." (Mt 25, 28-29)


“São Paulo sempre teve muito carnaval. Mas hoje está tudo resumido no desfile das escolas de samba e nos bailes dos clubes. E isso tudo é muito triste.” Pois nisso envelheceu o texto do nosso guerreiro. Porque os bailes nos clubes, de matinées e soirées monumentais que bem conheci, também não há mais. Dos quatro mais tradionais grandes clubes, sei que Corinthians, Palmeiras e Portuguesa já não fazem noites de Carnaval, não sei o Juventus. Nem nos pequenos clubes e casas tradicionais: Monte Líbano, Clube Homs, Casa de Portugal. Nem nas gafieiras, só talvez em pouquíssimos e renitentes salões de bairro. Também uma ou outra “danceteria”, mas dá arrepios até imaginar o que se ouve e vê por ali, pela amostra que tive ano passado na decadentíssima matinée palmeirense em que tentei levar minha filha e não suportamos quinze minutos. Sobram iniciativas isoladas dos Sesc's e, modéstia às favas, o Ó do Borogodó.

Por essas e outras, meus caros, é que o Ó do Borogodó, num sobre-esforço quase acima das suas forças (que eu sei), num desapego quase insano aos aspectos propriamente comerciais da história, resolveu bancar o baile da Terça-feira Gorda na rua, absolutamente de graça, com palco, orquestra, cantores, som, iluminação tudo bancado pelo bar graças ao auxílio necessário, mas insuficiente, da Cerveja Itaipava. Mesmo com todo o esforço, com todo o desprendimento (e por que não dizer, com todo prejuízo) , acreditem, senhores, a nobre Companhia de Engenharia de Tráfego – C.E.T. não quer deixar! Aliando a desculpa esfarrapada da “organização” do fluxo de veículos (esses, sim, os únicos e verdadeiros donos desta pobre cidade), com a repressão indisfarçada, imotivada, árbitrária e proposital, o poder público desta cambaleante metrópole opõe-se a colocar dois ou três cavaletes para fechar por algumas horas, uma ruela com meia dúzia de casas e um cemitério, numa Terça de Carnaval em que até a Av. Paulista vira um cemitério. Não pode. Não vai fazer. Não querem. Nem pagando a esdrúxula e exorbitante taxa que é cobrada pela referida “companhia”. A frase da engenheira (risos urinantes) que veio fazer a “inspeção técnica” a partir do pedido feito pala casa cunhou a seguinte pérola, que vou enquadrar e pendurar na parede do quarto, ad perpetuam rei memoriam, para toda vez que eu sentir começar a arrefecer meu ânimo de mudar este estado de coisas que quer tomar este país: “Este ano ainda tem uns bloquinhos por aí que a prefeitura autorizou. Mas no ano que vem a gente acaba com tudo.”

Aí eu fico a cismar, ó Simas, o que será desses que se arvoram em donos dos caminhos? O que lhes acontecerá? Poderão impunemente desafiar, caçoar, troçar do Grande Senhor? Passarão? Passarão???

10 comentários:

  1. Szegeri, não passarão! Não passarão! E como dizia a filha do portuga: - Deixa, ó pá!

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  2. Malandro, puta texto!

    Queria te pedir uma ajuda.

    Nesse sábado de Carnaval, estarei em São Paulo. Chego à 06:00 e às 13:00 pego um ônibus na Barra Funda pra Penápolis, interior.

    Queria uma recomendação de um lugar pra um almoção, tipo Rio-Brasília, aí na tua Cidade.
    Tens uma boa dica?

    Valeu! Abração!

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  3. Fê, a rua foi fechada Sábado passado para o Bloco do Ó (que aliás foi uma tremenda festa e minha melhor noite do ano!) e agora eles vêm com essa putaria?!?!
    Que demonstração de "poder" hein... O que eles provam a eles mesmos? Querem mostrar o que pra quem? Tipo: "Sou fodão e não quero arruaça na rua... Me foi outorgado o direito de determinar, de acordo com minha vontade e meu gosto o que acontecerá em cada rua... essa cidade é minha!"
    No cu deles toda essa empáfia!
    Irmão, uma vez você me disse que todos os que desafiam e que acham que não precisam de ninguém, se enforcam sozinhos... É isso! Não se ignora um povo e uma cultura assim não, mano!
    Um beijo!

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  4. Szegeri, acabei de ter uma idéia. No meio do Bola, vou sugerir que o cordão estenda o desfile até São Paulo, tomando a Dutra de assalto, em desfile com mais de trinta horas de duração. Invadiremos São Paulo e faremos a união entre o Bola e o bloco do Ó.
    É isso! O novo trajeto do Bola deve começar na Praça Floriano e terminar em frente ao Ó do Borogodó.
    Deixa, ó pá!

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  5. Não passarão, é claro! Jamais!

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  6. Obrigao, Amarildo, obrigado. Até sábado, vocês vão me matar...

    Favela: Eles se recusaram a fechar a rua para o bloco também, e ameaçaram multar. Curioso é que, em meio a um sem número de justificativas contraditórias que iam mudando conforme nossa argumentação derrubava as razões da "engenheira", eles disseram que não havia viatura nem pessoal pra fazer o fechamento (que implica em colocar dois cavaletes e tirar depois de cinco horas). Mas havia viatura e pessoal pra ir multar! Fizemos o bloco na raça e o funcionário que foi lá no dia, trabalhador brasileiro honesto e movido pelo espírito exclusivo de prestar o serviço público que lhe é confiado, e não o de prejudicar, mostrar poder ("mania de mandar", como dizia o poeta), etc., foi lá, fotagrafou a rua com os carros passando e deu no pirandelo, dizendo que não voltaria pra prejudicar um evento absolutamente inofensivo.

    A justificativa para não fechar a rua na terça é que TODO O PESSOAL ESTARIA NO SAMBÓDROMO!!!! Vamos ver se eles vã continuar valentes assim. Mais detalhes logo mais, em edição extraordinária.

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  7. Não sei se eles passarão, mas... se passarão, eu passarinho!!

    Vamos na raça meu cumpadre, que folia é coisa séria!! Onde é a sede da CET?? Vamos lá na frente fazer o Bloco dos Atropelados!!

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  8. Cumpadre Eric, cumpadre Galo, Bruno, Favela, Amarildo e demais amigos:

    Com satisfação, claro, mas não sem ter chorado de raiva dos imbecis que pensam que mandam no povo e de pena do povo sofrido desta triste cidade; com orgulho do Ó do Borogodó e do grande Marcão, nosso síndico e advogado nas horas vagas; com respeito ao Poder Judiciário, que fez prevalecer dignamente o direito: por ordem do MM. Juiz da 10ª Vara da Fazenda Pública, O BAILE POPULAR DO Ó DO BOROGODÓ VAI SE REALIZAR!!!!! A C.E.T. está obrigada por ordem judicial a fechar a via, garantir o trânsito e a segurança dos foliões! Obrigado, Meritíssimo! Obrigado, Marcão! Obrigado, Divindades do Carnaval, de quem sou o mais derramado e incondicional devoto!

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  9. O marcão é nosso líder!
    A Horácio Lane é do povo como o céu é do avião!

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