"Pra minha mulher deixo amor, sentimentoNa paz do SenhorE para os meus filhos deixo um bom exemploNa paz do SenhorDeixo como herança força de vontadeNa paz do SenhorQuem semeia amor deixa sempre saudadeNa paz do SenhorPros meus amigos deixo meu pandeiroNa paz do SenhorHonrei meus pais e amei meus irmãosNa paz do SenhorAos fariseus não deixarei dinheiroNa paz do SenhorÉ... mas pros falsos amigos deixo o meu perdãoNa paz do Senhor"
(Candeia)
Ainda que demos sorte, e as sabedorias todas índias tão várias e africanas tantas puderam temperar e amalgamar esse olhar brasileiro tão privilegiado, tão mais capacitado ao entendimento dessa bagunça toda que os bichinhos de duas pernas andam perpetrando pelo mundo. Mas, apartado do povo brasileiro e mesmo, na maioria das vezes, de costas pra ele, a pequena minoria “esclarecida” segue se arvorando em dona da razão e do entendimento, em senhora dos conceitos e dos destinos. Se essa pequena casta, porém, não representa o modo de ser do brasileiro, antes tendo historicamente feito tudo para que esta singularidade não se afirmasse, não existisse, ela sempre tratou de se encastelar nos jornais e universidades, nos cargos públicos e nas “sociedades organizadas”, agindo, pensando e falando – como se pudesse! - em nome do povo brasileiro. É por isso que, via de regra, nos livros bem vendantes, seminários badalados, reuniões intermináveis, artigos de jornal não vamos encontrar o Brasil; no máximo, essa burleta grotesca urdida pelos usurpadores.
Desta minoria tristemente fazemos parte, e por mais que nos queiramos livrar, por mais que ansiemos uma vida simples e natural, pesa sobre nós a herança de soberba e prepotência que tudo quer dominar. Somos filhos de um sujeito que se definiu pensante e transcendental, independentemente de qualquer experiência concreta do mundo. De um espírito que se pretendeu absoluto, encarnação da razão e sentido da história, senhor da idéia e da existência. Carregamos em nós essa pretensão usurpadora essencial, de ser o que não somos; não de querer mais, o que seria em tese legítimo, mas sobretudo de achar que pode o mais.
O século é da grandiloqüência, das grandes causas, das decisões fundamentais (ou fundamentantes, ou fundamentalistas, como queiram). Estou sinceramente farto de carregar sobre os ombros, sozinho, o destino da humanidade. É certo que o materialismo histórico padeceu da mesma doença, do mesmo sentido totalizante, filho do século que é. Mas a dialética nos ensinou a História como experiência essencialmente coletiva, a razão como uma construção necessariamente de muitos, de todos. Toda pretensão individual é irracional e, portanto, anti-histórica! Qualquer conceito que se abriga no sujeito renuncia ao conhecimento e decreta a ditadura farsante das positividades.
A vida é difícil, tenho que me preocupar com o aquecimento global, com a camada de ozônio, com as animosidades entre judeus e árabes, com os delírios do Sr. Bush. Tudo depende de mim, a chuva ácida, a fome em Burkina-Faso, o desempenho do ataque do Palmeiras, a reforma do Judiciário, o reajuste salarial da minha categoria, de todas as categorias. Depende de mim? Depende de mim uma ova! Quer dizer, depende mas não depende. Como animal pensante e social, está afeito à minha seara de responsabilidades ter consciência do que se passa no mundo, tentar entendê-lo minimamente, cuidar dos que estão no meu entorno, agir segundo esse entendimento e esse cuidado. Não muito mais que isso.
Temos urgentemente que renunciar à pretensão de decidirmos os destinos do mundo. É imperioso reconhecermos que nossas idéias particulares sobre todas as coisas são, isoladas, prejudiciais ao funcionamento da humanidade. E elas só não estarão isoladas se conviverem, necessariamente com suas negações, pois só assim caminha a experiência humana do mundo. É por isso que todo aquele que permanece atrás do seu
lap top, ditando opiniões e regras, policiando comportamentos e cobrando a adequação aos seus decretos distorcidos constrói a sua pequena ditadura particular, mãe e mantenedora de todas as formas de opressão. E é bem fácil conhecer, de longe, os pequenos ditadores. Seu discursinho conformador da realidade normalmente começa pela defesa intransigente da democracia, vale dizer, da possibilidade de cada ditaturazinha individual sobre a conformação do mundo se fazer respeitar na sua mediocridade essencial.
Sempre construí minha vida publicamente: escrevendo, debatendo, fazendo música, fazendo política, combatendo meus pequenos combates. Militando. Meus erros e acertos são conhecidos dos que se acercam de mim. Foi pública minha adolescência católica, no debate intelectual intenso e na dedicação pastoral irrestrita. Sabida minha participação na fundação do PSDB, minha proximidade participativa e atuante junto ao PT, a militância estudantil e na organização da minha categoria profissional. Os que me conhecem sabem como pus abaixo todo meu arsenal de idéias sobre a vida lendo Hume e Kant, sabem do meu marxismo arraigado, minha paixão pela teoria crítica, de tudo o que sobrevive em mim de católico, de tudo quanto busco e tento aprender no tesouro de sabedoria que campeia pelo Brasil, América Latina, África. Sabem da minha opção de engajamento filiado ao Partido Comunista, bem como todas as minhas críticas e discordâncias, que até hoje implicaram em debate e nunca dissidência. Tudo me podem imputar, menos dissimulação. Por que me cobram, então? “Eu falei abertamente ao mundo; eu sempre ensinei na sinagoga e no templo, onde todos os judeus se ajuntam, e nada disse em oculto. Para que me perguntas a mim? Pergunta aos que ouviram o que é que lhes ensinei; eis que eles sabem o que eu lhes tenho dito.” (Jo 18, 20-21).
Abaixo, pois, os desvarios megalomaníacos. Quem vota no Lula não é arauto da bandalheira e nem detrator da ética na condução dos negócios públicos. O que opta pelo Alckmin não é baluarte do moralismo udenista que ele pode representar e muito menos o eleitor da Heloísa Helena é um sebastianista messiânico inimigo da liberdade sexual das mulheres. Da mesma forma que os eleitores do Cristóvão não são os salvadores do mundo, “vinde a mim as criancinhas”. São pessoas, são forças políticas, são organizações, todas absolutamente inseridas e determinadas historicamente por uma infinidade de circunscriçõess. O eleitor faz uma opção, que é política, que é histórica, que é circunstancial. Não faz um juramento de fé, não imola sua alma, não faz votos perpétuos nem promessas de fidelidade “até que a morte os separe”. Faz escolhas circunstanciadas. Os mesmos que hoje se escandalizam com a corrupção desnudada são os que ajudaram, satisfeitos, a carregar a bandeira da “honestidade” como proposta política, como traço de distinção “dos corretos”. Os mesmos de sempre, prontíssimos tanto para alardear de suas janelas a impudicícia das filhas dos vizinhos, quanto para expulsar de casa a sua própria, carregadora que se fizer do estigma do “outro”, do impuro.
Este texto, que propositadamente pode ter feições de testamento intelectual, é muito mais um salve ao bom debate das idéias e um libelo contra as pretensões totalitárias desses democratazinhos de merda, cagadores de pseudo-conceitos e regrinhas de pensamento bem comportadas. Estou farto dos covardes e enrustidos, idumentária favorita dos opressores. Sou apenas um indivíduo. Um cidadão que pensa o seu mundo com uma lógica que não é só sua, que canta os seus sentimentos com um canto que não é seu, é de muitos, é de um povo. Que cuida de sua família, ganha o seu dinheiro, cumpre razoavelmente seus deveres, tem os seus inúmeros erros e defeitos e procura combater os seus combates.
Que sabe que está lutando e que quem luta tem que estar pronto para tombar. O combatente que não tem sentimento da própria morte é um louco ou um farsante.