terça-feira, 22 de agosto de 2006

Bahia de Todas as Esperanças

Cem por cento dos leitores pedem a volta destas mal traçadas. Não sabem é que continuo impregnado de Bahia até os ossos, e então mister não se precipitar, meu rei. Até o final do ano, três velocidades: devagar, quase parando e parado.

Quase dez anos passados, o Brasil nestes tempos tão atacado, tão solapados seus fundamentos pelos predadores de sempre, ora travestidos de mudernos e competentes governantes entreguistas do patrimônio público e da soberania nacional, devidamente comissionados, ora de baluartes do multiculturalismo tudo-é-válido-ningúem-é-de-ninguém, ora de pentecostais donos e senhores pretensos de toda a verdade e todos os caminhos (que Exu nos venha vingar!). Temia eu tivesse a terra de Todos os Santos sucumbido à frouxeza dos nossos alicerces balangantes. Mas qual o quê!

Adalgisa, que encontrei nas imediações sagradas do Opô Afonjá, de emanações de resistências jamais vincendas, mandou dizer que a Bahia tá viva ainda lá. Rio Vermelho, dez da noite, a negra mercando ainda parece um lamento que se agarra de unhas, dentes e contas ao que ainda vive e pulsa pelos becos e ladeiras. Ladeiras do Pelourinho que já não tem aquele verniz de ocasião que a Malvadeza mandou caiar - a do Carmo anda em pandarecos lamentável falta de projeto e proposta para o mais representativo acervo arquitetônico civil colonial: ficou só na perfumaria, infelizmente. Mas acima de tudo, os negros e negras esculturais seguem desfilando sua altivez e sua soberania impressionantes, senhores das ruas e dos mistérios, donos dos sons, dos passos e dos remédios nesta Cidade da Bahia.

Que continua a mais democrática, a mais miscigenada de todas as capitais brasileiras. Não só na promiscuidade tão maravilhosa de genes, credos e etnias, volúpias sempre incontidas, mas na não separação das moradias, bairros todos abrigando a variedade das classes e das culturas. Igrejas vizinhas de terreiros, prédios modernos junto às casinhas de alvenaria sem reboco, pretas de acarajés e abarás em frente ao restaurante japonês de linhas futuristas. Essa, a Bahia. A pichação de rua ostenta o arco-e-flecha de Oxóssi apontados para a igreja-franquia em frente, ladeados pelos dizeres: "não à intolerância, respeito à diversidade".

É tema para nós sempre recorrente o processo de apropriação da cultura popular pela lógica capitalista, que busca transformar tudo o que é liberdade e resistência em perpetuação dos processos de acumulação e de opressão. Dei-me conta nesta estada na cidade de Todos os Santos e Todas as Raças, que lá se operou, talvez como em nenhum outro lugar uma apropriação invertida. Impossibilitada de suprimir o âmago da própria opressão, a magnífica cultura do povo baiano transformou em seu, em único, muitas manifestações que seriam exclusivas dos dominantes. Pois é esse povo que faz da magnífica Igreja da Conceição da Praia templo de Iemanjá, do santuário Senhor Bonfim casa de seu Oxalá negro, encenando ali, mais do que um ritual de fé, uma demonstração de quem manda efetivamente nas ruas e encruzilhadas da Cidade Santa da Bahia, ignorando apelos e proibições eclesiásticas. E é nas suas ruas que esse povo canta, dança, come e reza.

Meu credo, sabeis, é que no fazer singular, nas especificidades dos modos de ser e estar no mundo é que se descortina o reino da liberdade, da autodeterminação, que presentemente se traveste em resistência, mas um dia há de ser afirmação. O grande Jorge Amado anteviu ainda nos anos 30 que a liberdade que vem da revolução dos meios produtivos, da quebra das estruturas capitalistas, convive já com essa liberdade anterior e essencial que se coloca aquém e além das estruturas econômicas de mediação social. Em seu Jubiabá, o grande romancista exalta reiteradamente a liberdade dos vagabundos, dos valentes, mendigos e desordeiros, juntamente com a sabedoria conselheira e curativa do centenário pai-de-santo, a prefigurar os domínios da atividade humana que podem ser mediados por outras categorias não-alienadas, ainda que o exercício dessa liberdade acabe finalmente por exigir a transformação das estruturas de poder, o que se dá pela luta operária. A Bahia nos ensina, pois, de qualquer forma, que nenhuma liberdade jamais existirá, se não formos sujeitos construtores do nosso próprio destino.

Vai o baiano, assim, resistindo, afirmando-se senhor de seus caminhos: nas tardes vagabundas de segunda-feira, na Ribeira; na arte afiada de Hansen Bahia, abaianadora de tudo o que se pode imaginar; nas quase-barrocas fotografias reveladoras-ocultadoras do babalaô Verger. No policial do Batalhão de Proteção ao Turista aboletado em prontidão defronte a uma viela suspeitíssima, a informar solicitamente aos interessados em saber o que encerrava aquele beco instigante e tortuoso: "aglomerado de bares ilegais, pontos de venda de drogas e objetos roubados, senhor; altamente recomendável não entrar".

Um comentário:

  1. meu querido, infelizmente sábado não pude ficar... mas passei aqui e amei os textos novos... principalmente o da bahia... pq será??? saudades e beijos... tati
    ps.: a luli me disse que vc não tinha certeza que tati seria... ora a tatu... que dúvida...

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