Edson Coelho de Oliveira
Diz-se que as coisas - sem consciência - só existem em nós, que lhes atribuímos existências e metáforas; não assim com a chuva, nossa mãe.
Quando quero amar Belém, digo chuva, e a cidade me reconhece de longe, e amo Belém nas ruas, sob as mangueiras cacheadas, amo Belém na Cidade Velha, onde o Tempo mora em casarões, amo Belém nas ruas do Reduto e do Telégrafo, onde o cinza dos crepúsculos polvilha nossa alma e gera uma melancolia alegre, amo Belém na Pedreira e na Matinha, onde as meninas desfilam na volta da academia e, à noite, os adolescentes se reúnem, aos montes, encostados nos canais - essa Belém que só encontro quando chove, e o asfalto reflete não a luz, mas a luminosidade, como se o Sol não se importasse com tanto brilho, ou a Lua se dissolvera numa tela delicadíssima que nos envolve secretamente, tal um jardim sem cigarras.
Em quase todo o mundo, a relação dos povos com a chuva é escassa, como se ela nem existisse ou pudesse e mesmo devesse ser evitada; na Amazônia, a chuva é cotidiana, íntima, inevitável, 'de casa'. Por isso, quando quero amar Belém, digo chuva, e na Feira da 25 a tapioquinha recende como se o cheiro viesse do chão, e no Ver-o-Peso os barcos antigos parecem pintados diretamente na paisagem, e sob a chuva a Praça da República é a mais extensa tela da cidade, e em algumas ruas de Batista Campos faz sempre sol mesmo sob um aguaceiro, e no Entroncamento Niemeyer mora numa nuvem e há dois anos não sai de casa, e na Cidade Nova todas as pessoas parecem combinar para sair ao mesmo tempo, tão logo passe a chuva do início da noite, e no Guajará o asfalto estranha a ausência de prédios, e no Curuçambá as estradas sinuosas dão à cidade um colar de árvores, e no Benguí piscinas de água natural recebem ameixas e meninos.
É também certo que, quando quero amar a chuva, digo Belém, e se for em São Paulo a garoa torna-se cálida, e se for no Rio, o mar entranha-se pelas paredes das ruas e odora no chope, se for em Ouro Preto, dezenas de poetas se reúnem em silêncio nas ladeiras de pedra com telhado, se for em Brasília, o tráfego flui como o rio de aço de Drummond, se for na Chapada dos Guimarães, as rochas jorram águas límpidas sobre plantas e cristais, se for em Marituba, três ruas pedirão para morar noutro lugar, se for em Benfica, os sítios tomarão um banho de mil anos, se for em Mosqueiro, a água trocará duas palavras com a água e eu amanhecerei no Ariramba ou no Marahu.
Sim, quando quero amar a chuva, digo Belém, nem que fique preso sob uma marquise, nem que o trânsito me retenha, nem que o meu amor espere ao celular, nem que eu chegue atrasado ao Mangueirão, nem que os bares já tenham fechado (à meia-noite), nem que os amigos liguem de madrugada para gozar a extinção do meu time, nem que a Perebebuí esteja só buraco, e ali perto o Bosque é lindo como um grande pedaço da minha infância que não envelhece, e na Primeiro de Dezembro (não a João Paulo II, recente-renomeada) amanheci tantas vezes que conheci duas estrelas de seu céu: pois nem agora que a Primeiro de Dezembro foi proibida de ver a madrugada desisto de dizer Belém, digo Belém e amo essa chuva de todas as horas, de todas as ruas, com suas imagens clássicas, suas calçadas tomadas, a curva parabólica que os carros fazem em frente ao São José Liberto (ex-presídio), estas sensações de Belém tão à flor do corpo que ando, de um jeito ou de outro, feliz da vida com tanto temporal bendito temporal sobre nossas cabeças.
Porque Belém e a chuva, a chuva e Belém, são a mesma coisa.
Edson Coelho de Oliveira é jornalista, poeta e escritor paraense, necessariamente em todas as ordens.
Fonte: O Liberal, 07/05/2006
E quanta água abunda em mim como se jorrasse por dentro depois de ler o Edson. Ai, saudade da minha morena (dia desses estouro por essas bandas)!.
ResponderExcluirObrigada Edson e Fê. São frescas as lembranças de quando eu saía do Diário e pegava chuva até em casa. Aguaceiro de doer na alma de quem está longe.
Railídia