Paulo Mendes Campos
Uma vez, ao sair de um labirinto burocrático, psiquicamente entorpecido, reparei que eram onze horas de manhã limpa e amena. Suspirei para a mulher que estava ao meu lado: Que pena!
Que pena, sim, pois é bem ridículo renascer às onze horas de manhã limpa e amena, e não existir um só antro na cidade, no qual uma alma leve possa comer um bolinho de feijão! É uma das contradições da civilização! Intolerável que uma cidade devore oceanos de peixes, rebanhos de bifes, enxurradas de cereais e hortaliças, sem poder ofertar ao consumidor um pratinho de bolinhos de feijão. Fazenda minhas as palavras sombrias de um russo, no banho de luz da Praça Marechal Âncora, ameacei a humanidade: Mundo louco, feliz em tua loucura, o teu despertar será terrível!
Mas a mulher que andava ao meu lado era gringa, e perguntou-me: What is a bolinho de feijão?
Well... um bolinho de feijão! Um bolinho de feijão é feito de feijão-fradinho. Parece com acarajé, mas não é bem acarajé. Um bolinho de feijão é uma coisa que você come muito na infância, e mais ainda na adolescência, quando descobre a cerveja, e depois fica a procurar, em vão, por todos os cantos do mundo. Um bolinho de feijão, às vezes é a joie de vivre, para mim ele é le temp retrouvé, e era o que a Gioconda queria quando sorriu. Um bolinho de feijão é quase o que os germanos chamam de Gesamtkunstwerk, uma perfeita e orgânica obra de arte. Um bolinho de feijão é o maná (o quente) que este céu agora nos promete, mas não encontraremos jamais.
Mudando de rota (em Leblonema não há bolinho de feijão), cruzamos a praça, caímos à esquerda em General Justo, e comprei duas passagens no Aeroporto Santos Dummont.
Em Belo Horizonte – expliquei em voz baixa para a minha alienada – ainda há bolinhos de feijão. Não tanto quanto no meu tempo, é claro, pois a era dos enlatados corrompeu as paciências culinárias. Mas há! Sei de um bar n Rua da Bahia – o Ignacio’s - que, neste mesmo instante, está a frigir bolinhos de feijão da melhor qualidade. Daqui a uma hora e de vôo e vinte e cinco minutos de táxi, eu te apresentarei, mulher, ao bolinho de feijão.
Dei bom-dia ao bom proprietário e escolhi o melhor lugar. Expliquei a boa técnica para a companheira: a gente não deve ir chegando e pedindo logo um prato de bolinhos de feijão. Não. Deve tomar um ar de quem não quer nada, mas de quem pode subitamente ter uma idéia fabulosa. Como se os bolinhos nem existissem, pedir o melhor uísque escocês, para apanhar a boa boca. Ir bebendo com tranqüilidade, falando de coisas sem importância, para distrair a idéia. Depois, no momento de pedir o segundo uísque...
Foi o que fizemos. Falamos sobre as guerras da Ásia e outras trivialidades, bebericando devagar, com aquele gosto das esperanças certas. Acendi um cigarrinho e chamei o garçom:
- O senhor agora, por favor, vai trazer mais dois uísques e um pratinho com aqueles bolinhos de feijão
- O doutor vai desculpar, mas o bolinho de feijão está em falta.
Como Franz Kafka, não entendi mais nada. Passar duas horas numa repartição pública, descobrir de repente na luz da manhã que Deus existe, o avião existe, o bolinho de feijão existe... E o bolinho de feijão estava em falta! Meu primeiro ódio foi lingüístico, contra aquela expressão idiota: nada do que a gente quer devia estar em falta. Em seguida, com a fleuma dos arruinados, perguntei ao rapaz:
- Por que que o bolinho de feijão está em falta?
- Porque a cozinheira, que sabia fazer bolinho de feijão, partiu de faca na mão pra cima dum garçom, de faca na mão; o patrão mandou ela embora.
- Mas, meu amigo, não faz sentido: se a cozinheira, que sabe fazer bolinho de feijão, partiu de faca na mão pra cima do garçom, que não sabe fazer bolinho de feijão, quem devia ir embora é o garçom.
- Mas acontece, doutor, que a cozinheira não tinha razão.
- Meu caro, o bolinho de feijão tem razões que a própria razão desconhece... A prova disso é esta: acabamos de chegar do Rio de Janeiro para comer bolinho de feijão. Não é só isso: esta senhora nasceu na Europa para conhecer um dia o bolinho de feijão de Minas Gerais... Vê se quebra o galho, meu chapa.
O Inácio veio falar comigo e repeti para ele minha estupefação, no caso da cozinheira, e minha indeclinável urgência em comer alguns bolinhos de feijão. O homem comoveu-se, mandou um menino percorrer os botequins da capital. Aguardamos em silêncio.
Meia hora depois, três bolinhos de feijão, murchos e frios como as graças fanadas na véspera, eram colocados na mesa. Ela comeu um; eu comi outro; dividimos o último irmãmente. E voltamos para o Leblon.
(in Os bares morrem numa quarta-feira, São Paulo: Ática, 1980, pp. 118-120)
Essa crônica é muito engraçada. Estou me escangalhando aqui de rir. Muito bom.
ResponderExcluirObrigado por este paulinho de feijão. Aguardo os próximos, quem sabe de feijão braguinho.
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