quarta-feira, 1 de fevereiro de 2006

Porta de barbearia

Sou, como os meus bem o sabem, acima de tudo um fiel. Mormente no que respeita aos meus butiquins, aos comércios em que confio, aos meus lugares e manias. O que dirá em relação ao homem que segura a navalha contra o seu pescoço, em quem se deve confiar cegamente, como bem alerta a sabedoria popular. Cortei o cabelo durante mais de 25 anos no mesmo lugar, o Salão Marília, um cinquëntenário estabelecimento do tradicional bairro das Perdizes. Dele não diria simples, mas clássico. Nesse quarto de século, enterrei dois barbeiros e um terceiro voltou pro Ceará. Aí perdi o gosto, principalmente porque as coisas menos importantes feitas no barbeiro são barba e cabelo.

Os barbeiros, na verdade, são de uma relevância menos ressaltada que o merecido na história urbana brasileira. No século XIX, a ocupação foi a primeira profissão liberal assessível aos elementos das camadas sociais mais baixas, mulatos, brancos pobres, negros forros ou mesmo escravos autorizados, eis que não dependia de uma habilitação acadêmica só possível para os "de berço". E a habilidade desenvolvida no manuseio dos instrumentos de cutelaria acabou por conferir a esses profissionais prerrogativas de realizar tarefas muito mais importantes do que as simplesmente relativas ao corte da barba e do cabelo. Do que se chamaria mais tarde manicure/pedicure até cirurgias de pequeno porte, passando a aplicações de emplastos, compressas e sanguessugas, além de outras técnicas medicinais da época, tudo incumbia aos bons barbeiros.

Um capítulo ligado especificamente à história da música popular brasileira mereceu estudo minucioso do grande José Ramos Tinhorão: a chamada música de barbeiros. Pois eram esses profissionais mais afeitos aos trabalhos delicados que as pesadas lidas da construção, da lavoura ou da estiva a quem sobrava mais tempo para a dedicação às técnicas dos variados instrumentos. Somando-se a presença entre os barbeiros de negros educados nas bandas de música das fazendas e o caráter urbano das barbearias, tivemos os ingredientes para a primeira forma de música instrumental urbana nativa, tida como célula mater do choro.

Hoje, é certo, as barbearias não tem mais a mesma importância que até meio século atrás, ou pouco menos em relação às cidades menores. O advento dos aparelhos elétricos e descartáveis pouco a pouco fez desaparecer o hábito de se fazer a barba diariamente com profissionais. E, em conseqüência, os salões foram deixando de ser aquele ponto de encontro diário dos homens mais ou menos importantes, a caminho de suas tarefas diárias. Não obstante, até hoje o barbeiro é para mim, juntamente com o táxi, o melhor termômetro dos ânimos populares, seja no que respeite à política, ao futebol e às trivialidades do dia-a-dia.

Depois que abandonei as Perdizes e o Marília em busca de um habitat menos hostil à minha alma suburbana, fui migrando por vários barbeiros sem destino muito certo. Perigosamente ignorando o aforismo popular, a escolha ia se baseando nos quesitos aferíveis de plano: cabeça branca do titular, tira de couro na cadeira pra afiar a navalha (eu disse navalha, não esses arremedos com giletes descartáveis), estufa elétrica ou a gás para a esterilização, vidro de Água Velva em lugar visível. Imagem do santo de devoação ou poster do time do coração ajudam, principalmente se for do Juventus ou da Portuguesa. Minha única exigência mesmo é que no letreiro esteja escrito "barbeiro", ou "barbearia". Pode até não escrever nada, desde que estejam longe as palavras proibidas: "cabeleireiro" e "unissex"!

Três vivas e os melhores sentimentos, então, para os que me dispensaram a ajuda dos psiquiatras cuidando bem da minha cabeça: Carlos e Horácio, que já aparam as barbas de São Pedro; Antônio, que voltou pro Ceará; Oswaldo e Raul, ativos ainda, há 50 anos no Marília; Seu Joaquim, com sua barbearia insuperável, também cinqüentona, parede-com-parede do Ó do Borogodó, com direito ao dito poster da Lusa, rádio a válvula e tubos de Bilcrim com duas polegadas de poeira; e, finalmente, o bom Bonizzi, em cuja portinha lapeana ancorei de novo minha confiança, de uma gentileza e dedicação que tanto me comoveram e inspiraram nesta manhã.

2 comentários:

  1. Anônimo2/2/06 15:41

    Que beleza de texto, que contextualização supimpa! Parabéns efusivos, seu Szé!!!

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  2. Você se recorda que eu, naquela barbearia empoeirada ao lado do Ó, ofereci uma fortuna por aquele tubo de Brylcream azul (com pó negro escondendo o nome do troço) e o sujeito neca de pitibiriba?

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