quarta-feira, 22 de fevereiro de 2006
Num domingo de carnaval
Dante fa versi diviini
Chianti fa vini diversi
Num domingo de carnaval em 1914, precisamente no dia 22 de fevereiro, nasceram no Engenho de Dentro – provavelmente o lugar menos italiano de todo o planeta – os gêmeos Dante e Chianti. Teixeira Nunes, é bom frisar. Se não me engano, na rua Bento Gonçalves, do lado que antigamente se dizia "das oficinas", em alusão aos galpões de pintura e reparo de vagões da Estrada de Ferro Central do Brasil que hoje abrigam o Museu do Trem.
O terreno da casa da Rua Bento Gonçalves era tão grande, mas tão grande, que um dia um homem se enforcou numa árvore do quintal e só encontraram o corpo três dias depois, por causa dos urubus. Quem era esse homem, como entrou no quintal, ou por que teria-se matado, ignoro completamente. Só sei que vovô, o Dante, contava. Como contava também das redes armadas embaixo das jaqueiras, pra que a jaca não se espatifasse ao cair. E olha o tamanho da bichona, descendo, quebrando a galharada! E quando caía, ah... A molecada enfiava mesmo a cara na jaca (não era o pé, naquele tempo) e - meu Deus! – não é que eu posso ver direitinho as carapinhas todas lambuzadinhas, mesmo só tendo nascido 50 anos depois?
Desse tempo também era a receita de aluá, com casca de abacaxi e enterrado no quintal por três dias, pelo menos. E o bonde puxado por burro, que vovó, da Zona Sul, sempre caçoou.
Depois, foi a casa da rua que depois se chamou Monsenhor Jerônimo, como até hoje, que começa na linha do trem e morre na Dias da Cruz. Nessa casa lembro do meu bisavô chegando da feira com aquelas bananas pretejadas que ele gostava – assim como vovô - e a bisa Anália reclamando. Lembro da minha mãe, pequenina, brincando na rua com as amiguinhas que moravam naquele arremedo de morro. Vocês vão querer saber como é que eu posso lembrar e eu só sei que quando pus os pés pela primeira vez na Monsenhor Jerônimo uma casa velha chamou demais minha atenção e encheu-me o coração daquela saudade engraçada do que se não viveu. Naquela hora eu soube. E horas mais tarde, soube de novo, do jeito mais usual de se saber, confirmadinho pelo bom Tio Osias.
Tempos depois foram as tardes de domingo no velho Largo do Estácio. E a gola da camisa que ficava preta por causa da fuligem da maria fumaça. Já em São Paulo, foram as pensões da Santa Ifigênia, com os ratos mordendo o dedão dos hóspedes, onde um belo dia um colega levou um violão e um menino conterrâneo do Engenho de Dentro, que cantava bonito demais e estava começando no rádio, Orlando por nome. Nos seus olhos castanhos, já meio acinzentados de sabedoria e doçura, vi também o Chico Viola no Pacaembu, reconhecido na multidão, acenando pra torcida com o paletó.
No sorriso postiço, de dentes perdidos antes dos trinta anos, vi o Palestra em campo, empoleirado numa arquibancada de madeira. E que defesa do Oberdan... Jair da Rosa Pinto era malandro, só jogava se o clube lhe reembolsasse o imposto de renda devido (e olha que era vovô, fiscal da Receita, que lhe preparava as declarações, como as do Junqueira e as do Zezé Procópio). Mas como jogava! Comecei a ficar palmeirense quando sábado, na casa dele, esperava-o chegar todo de branco, distintivo reluzente embaixo do S.E.P. bordado em verde, uniforme oficial do imbatível time de bocha do Palmeiras. E terminei quando conduzido por esse semideus mulato, meu particular "príncipe etíope de rancho", fui parar no colo do Luís Pereira, titular da seleção brasileira, sim senhor.
A vizinha da Rua Cotoxó, na Pompéia, ficava espiando a hora dele chegar. E dez minutos depois estava de orelha posta na janela que dava pro banheiro onde vovô desfilava seu repertório de sambas e serestas. Podia ter sido cantor, não fosse gongado por aquele palhaço do Otávio Gabus, pai do Cassiano, que só entendia mesmo era de passear com as "boas" candidatas, ora essa! Se essa rua, se essa rua fosse minha... Está lá gravada a voz do velho até hoje, vibrato caprichado de seresteiro, trinta segundos de uma imortalidade que é muito mais efetiva dentro do meu peito. Talvez por isso eu cante, por ele ter-me dito que quando morresse só sentiria saudade do canto da voz humana. E quando eu-menino comecei a morrer naquele 18 de julho de 1989, soube que eu-homem precisava começar a nascer. E cantar.
E enquanto esse homem-menino segue cantando, meio-nascendo-meio-morrendo, vai lembrando da sua mão fria e tão macia, o dedão curvado, cheirando a Pinho Campos do Jordão. Vai querendo seu colo de vô, lembrando do dia em que fez uma malcriação qualquer e ele chorou, mas disse que não tinha importância "porque vovô te ama muito". Vai tentando se mirar no funcionário público exemplar, impoluto, cassado politicamente pelos putos dos milicos da pseudo-revolução moralizadora. Vai sentindo gosto de Chokito, bala de goma, cigarrinhos Pan de chocolate, fósforo de marzipã ou Alpino, que ele trazia todo dia quando nos visitava, no caminho do trabalho pra casa. E vai, principalmente, tentando viver essa vida direitinha, pra quando um dia se chamar saudade, alguma alma possa dizer, mesmo mentindo, como rigorosamente TODO MUNDO diz dele até hoje, sem mentir: "O Dante? O Dante foi o maior de todos..."
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Mano Szegeri, não fosse pelo fato de estar MUITO mais bonito e incomensuravelmente mais comovente que meu texto de ONTEM e eu te esculhambaria em mais alto e bom som: Imitão! Copiador! Sem imaginação NENHUMA!
ResponderExcluirSó porque eu falei do meu vô no Buteco?!
Ora, chispa!
Que beleza esse amarcord, seu Szé! O Dante e o Chianti, e também o Osias que vou conhecer um dia desses, o verso italiano, o Zezé Procópio (Aymoré Moreira; Bibi e Nariz (Álvaro Lopes Cançado); Zezé Procópio, Martim Silveira e Heitor Canalli; Benedito, Nilo Murtinho Braga, Carvalho Leite, Perácio e Patesko, com pontos e vírgulas, meu Botafogo tetracampeão 1932-33-34-35, foda-se que era Liga Barbante, era também a seleção brasileira de 1934), as jacas, a Rua das Oficinas, putzgrila! Morei ali perto, dava pra ir a pé da Abolição ao conjunto dos ferroviários. E o quintal do meu avô, seu Correia, também era uma imensidão, pegava da Cantilda Maciel, a rua do carnaval onde morei, até a rua da Abolição, dando fundos para o Cinema Bandeirantes, que virou Robertão dos Móveis e hoje não me lembro o que é, só vendo quando passar. Parabéns, parabéns, parabéns!
ResponderExcluirPois é, mano Edu. O bonito é isso...
ResponderExcluirZé Dinda, olha, um dia vamos armar pra você conhecer o Tio Osias. Eu e o Edu vamos ficar só de arquibancada, assistindo o bate-bola, ele desfilando a escalação do Fluminense, tricampeão em 36, 37 e 38! E aguarde, que em breve publicarei a saga com Nelson Rodrigues e Armando Nogueira.
Passei outro dia lá no Engenho de Dentro e a Bento Gonçalves tá irreconhecível, posto que agora morre embaixo da Linha Amarela, um horror completo. Tenho essa ligação sentimental com "o lado de lá" (isso tem tanto no subúrbio, né não?), mas se tivesse que escolher ficaria hoje do lado da Mons. Jerônimo, da Adolfo Bergamini, Dr. Bulhões, Rua Pernambuco. O meu lado outrora favorito, de D. Eugênia, José dos Reis, Bento Gonçalves, Rua das Oficinas, ficou meio esquisito.
Salve o subúrbio! Salve a Arranco do Engenho de Dentro!
Ai, Fê! Quer me matar?
ResponderExcluirMesmo só lendo seu texto hj, chorei de novo como chorei de saudade dele no dia 22 à noite já quietinha na minha cama. E aí pensei: "Que sorte a nossa ter tido avós tão maravilhosos..."
Fiz uma cópia do texto pra Mom e já imagino a reação dela ao ler.
Obrigada, querido! Linda sua homenagem pro Vovô, que de onde está sente o maior orgulho ao ouvir vc cantar.