segunda-feira, 13 de fevereiro de 2006

Dos carnavais que não voltam mais – I


Quero ser ninguém na multidão


Quero me afogar em serpentina
Quando ouvir o primeiro clarim tocar
Quero ver milhões de colombinas
A cantar "tra-la-la-la-la-lá"...
Quero me perder de mão em mão
Quero ser ninguém na multidão

O primeiro clarim, marcha de
Klecius Caldas e Rutinaldo


Um homem que não guarda segredo sobre seus descaminhos carnavalescos, não honra as saias que veste.

Pois conversavam hoje na repartição, moços e moças, quase inocentemente, sobre seus planos para o carnaval. Há uns anos poucos e as conversas seriam sobre a etapa do campeonato de surfe nalguma praia catarinense, ou sobre um pacote muito em conta para as Serras Gaúchas. Hoje, o carnaval voltou à moda. Bem menos em São Paulo, é certo, mas ainda assim anda sempre na pauta da moçada paulistana um bloco desses no circuito Barra-Ondina, abadá uma pechincha, parcelado em doze vezes. E o maracatu-nação? Tudo! Escola de samba do Rio está na baixa, mas não perdeu completamente seu valor (com traslado do hotel para o sambódromo incluso, que a violência no Rio, Deus me livre andar na rua...). Desfile das campeãs, que dá menos fila é melhor.

Entre os cariocas, a onda mesmo de uns quatro ou cinco anos pra cá são os blocos. Meu irmão Edu, a quem apraz passear por muitos blogues, deve estar se fartando de roteiros pessoais para o carnaval, com horários, compromissos, programações. E dicas, muitas dicas. Tudo tintim-por-tintim: sábado vou ao Bola (essa está em todas, mesmo se o cidadão acorde meio-dia de ressaca e vá tomar um chope quente no Amarelinho à uma; encontra dois bebuns cantando "Pela porta aberta..." e escreve no blogue, na quinta-feira, que o Bola mais uma vez foi a melhor coisa do carnaval), depois vou pra cá, depois pra lá. Domingo encontro fulano e vamos pra casa de sicrano encontrar o pessoal do bloco tal... E assim vai.

Pois acho que eu sou de outro tempo. Sou do tempo do velho Mário Lago, que chegando em casa manhã avançada, indagado por sua mãe sobre onde estivera, devolveu com a elegância malandra de outrora: "a senhora quer que lhe minta ou lhe falte com o respeito?". Do tempo do Baile dos Casados nas matinês de segunda-feira de carnaval, dia de expediente, sim senhor. Do tempo da máscara negra que lhe escondia o rosto. De tirar o anel de doutor, para não dar o que falar...

Meus amigos reclamam que não me acham. Que marco e não apareço. O Edu mesmo, que é preciso do início ao fim, me procura no Bola todo ano, mas nunca conseguiu me encontrar. Se encontro, não fico. Se acho, passo. Porque a graça mesmo do carnaval é esse deixar-se largar, é sair sem paradeiro, beber até o dinheiro acabar (depois voltar de táxi, pedindo pro chofer esperar enquanto vai lá dentro pegar o da corrida; ou dormir na rua...). É pegar o primeiro ônibus que passar, desmaiar de porre e saltar quando for acordado por um pixinguiniano "pa ra ra rá ra ra rá ra ra ra ra ra ra ra ra rá / pa ra rá / pa ra rá / pa ra ri ri ri ri ríííííí...", num trombone desafinado.

Talvez tenhamos levado, os homens, a piada tão a sério, que hoje a graça toda seja mais contar do que viver. Talvez nós que não lemos as revistas caras nem assistimos aos biguebróders estejamos mais impregnados desse espírito panóptico do que possamos admirtir. Nos desvencilhamos em boa parte, é certo, de uma hipocirisia colonial que trancava mulheres e filhos em casa e fazia da rua o reinado dos machos adultos, cenário dos jogos de dominação em todos os níveis. Mas talvez tenhamos perdido junto a utopia do carnaval como reinado da indiferenciação, do anonimato, da mistura, do desregramento (nesse sentido). Não soubemos ou não pudemos incorporar da sabedoria africana e indígena o sentido da ocultação e o correspondente jogo do desvelamento, que afinal compõem a forma tanto do sagrado como do jogo da sedução.

Por isso, talvez, o carnaval em geral esteja assim perdendo um pouco da graça. Dirão vocês que estou ficando velho, e possivelmente resida aí uma parte considerável do problema. Mas anoto que não deixo de sentir graça e não deixo de celebrar o velho e bom Carnaval com a energia e a entrega que me são pedidas nos momentos e espaços onde ainda é possível minimamente encontrá-lo. Enquanto se dessacraliza, na medida em que se despe da sua forma de ocultação, de ritualização, de entrega e sacrifício e assume sua dimensão de normalidade, de universalidade, o carnaval, "em momentos assim, morre um pouquinho mais". Paradoxalmente, quanto mais blocos na rua, quanto mais gente nas suas fileiras, quanto mais se incorpora na "agenda cultural da cidade", menos sobrevive do carnaval.

Não acredito tratar-se de uma lei inexorável (embora não adiante escrever isso, porque os bobocas de sempre dirão, com isso ou sem isso, posto que não sabem ler, que somos puristas, donos da festa, curadores do povo e todos os etcéteras cansativos), mas no mínimo de uma tendência perversa. E não nos resta muito senão desligar os televisores, não comprar as revistas caras, não ler os blogues-vitrines. Não assumir compromissos, não compartilhar roteiros, não dar nem pedir dica. Sair, beber, dançar, brincar...

Ser ninguém na multidão.

2 comentários:

  1. Querido (sente-se, o choque há de ser imenso): não estou com NENHUMA (à sua moda) vontade de pular o Carnaval. Jamais, em 36 anos, estive, a essa altura, com esse Desânimo maiúsculo. Ainda não fui a NENHUM bloco, e penso que irei apenas ao Bola, mais por manutenção de uma tradição de há décadas do que por empolgação, que empolgação não há. Creio que por isso, e apenas por isso, encontrarei você, esse ano, no meio daquelas mais de 50.000 pessoas. Beijo.

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  2. Edu, o seu desânimo é prova empírica da minha tese: o carnaval do Rio anda chato. Embora discorde de você radicalmente quanto à conseqüência. Carnaval não é para os animados. Esses devem se dirigir ao camarote da Brahma. Carnaval é sacrifício, sofreguidão, libação. “Angústia, solidão, um triste adeus em cada mão / lá vai meu bloco, vai / só desse jeito é que ele sai...”. Qualquer psicanalista de butiquim pode atestar que o que impele o verdadeiro folião não é a alegria, nem a animação: é a pulsão de morte.

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