segunda-feira, 6 de fevereiro de 2006

Nancy


Batidas na porta da frente: é o tempo!
Eu bebo um pouquinho pra ter argumento
Mas fico sem jeito, calado, ele ri
Ele zomba do quanto eu chorei
Porque sabe passar e eu não sei...


Resposta ao Tempo,
de Aldir Blanc e Cristóvão Bastos



Dede o longínquo 06 de fevereiro de 1916, existe para essa dimensão do mundo sob nossos olhos a que carregaria o nome de Nancy. Minha avó, mãe de mamãe. E a família ontem reuniu-se para o almoço, que transcorreu com a animação possível, boa comida, boa música e aquele incômodo de todos sentido e pouco manifestado de constatarmos que não éramos mais os mesmos da festa dos 80. As ausências dos que nesse meio-tempo passaram para a morada dos ancestrais, somada à dos mais jovens que, sem paciência para as coisas dos velhos e sem idade para serem conduzidos sub vara, deram a medida de que, afinal, o tempo tem passado para todos.

Num telão acoplado a um computador, iam desfilando, como a moda reza, velhas e novas fotos familiares. Agora ela está com vovô, vestida de noiva, em 1940...

Carioca de Botafogo, nascida na Rua Marquês de Abrantes, criou-se em São Paulo, mas jamais perdeu a referência de origem, da qual até hoje dão testemunha o "s" chiadinho e o "r" reforçado. Das suas três amigas dos tempos da Escola Normal Caetano de Campos que estiveram nos 80 anos, só uma presente. Quando cheguei ela já tomava sua Brahma geladinha, mas recusou a segunda por não querer "abusar". A saúde não permitiu a presença das demais, vivas e lúcidas, para poderem reafirmar contra quaisquer argumentos uma convivência de 77 anos.

De repente está lá minha mãe, adolescente, num "vestido alinhado, de godê, todo plissado", como no samba...

Acompanhando-se ao violão, um rapaz de não mais que vinte e poucos anos cantava a Rosa do Pixinguinha, canções do Caymmi, sambas do Ary Barroso. Soube que é amigo do Bruno, o mais novo dos primos, que mostrou também que dia-a-dia tem aprimorado seu violão. Como eu, passou a adolescência entre Sílvio Caldas, Noel, Orlando Silva, mas afortunadamente a performance indica mais talento e mais dedicação. Fiquei pensando em como a minha solidão foi maior, jamais poderia ter encontrado jovens companheiros pras minhas nostalgias musicais (fora a Roberta Valente, que já nasceu velha). Meio sem motivo, apanhou-me uma boa sensação de ter cumprido o papel de levar à frente o bastão. Mas pelo menos os anos de estrada ainda me permitiram invocar vovô, o velho seresteiro, e cantar em homenagem à aniversariante:

Ouve esta canção
Que eu fiz pensando em ti
É uma veneração, Nancy...


E não é que ele aparece de calção de praia, moço e bonito como só, mas o computador mal nos permite firmar a atenção e de repente estamos todos, com ele, numa das suas últimas fotos em 89...

Vovó, que até então mais observava, gostou. Enquanto esperava minha mulher, fiquei ali a ver minha filha correr pelo salão. Mamãe comandava a organização junto com o Dudu. As fotos todas se sucedendo na tela, a melancolia misturando-se ao champanhe na brecha da noite mal dormida. Quatro gerações entre si costuradas no tempo e no espaço, pela força dos fios da memória, do coração e dos circuitos eletrônicos.

...Somente poderia
A musa traduzir
O nome que é poesia:
Nancy...


Logo me vejo, só de fraldas no colo dela, no portão da velha casa da Rua Cotoxó...

Se hoje percebo em mim mais nítidos os traços dos outros avós, ela foi sem dúvida, na primeira infância, meu porto mais seguro, minha referência mais presente. Instância de apelação quando das demandas indeferidas, ouvidoria para as queixas, embaixada em caso de necessidade de asilo. Vali-me muito bem, é certo, da condição de protegido que gozei até ter consciência e autonomia para discordar. Mas se a vida foi pouco a pouco pondo em relevo as divergências, não é menos certo que eu me pegue a torto e a direito reproduzindo seus ditados, contando suas histórias, incorporando suas lembranças, nesse processo tão vital de sobrevivência que consiste na transmissão do nosso cabedal mais íntimo, aquele que, se não nos incumbimos de competentemente legar, não há inventário nem testador que dêem conta.

...É a mais linda história
De amor que conheci
Quando o seu nome
Assim eu repeti:
Nancy, Nancy, Nancy *


Bisa para a Iara, minha mãe duas vezes, como sempre fez questão que eu repetisse, vejo-a agora na tela, aos cinco anos, nas vésperas do carnaval de 22...


* Nancy, valsa de Moacyr Bueno Rocha, originalmente gravada por Francisco Alves em 1933

4 comentários:

  1. Anônimo9/2/06 22:13

    Querido, eu só não era totalmente excluída da minha turma porque também gostava de Lulu Santos, Raul Seixas, Legião Urbana, Mutantes, etc., mas todos tiravam sarro de mim, "a vó", que gostava de Vicente Celestino, Pixinguinha, Silvio Caldas, Carmen Miranda, e aí vai... ;-)
    beijoca

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  2. Calma, Sze, a Roberta só estava brincando...

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  3. Tbém esse texto estou lendo só agora, com atraso.
    E me lembrei de quando ligava pra ela pra contar que vc tava sentando o cacete em mim e na Kika...rs
    Saudade desses tempo...
    Beijo

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