quinta-feira, 24 de fevereiro de 2005

Mário de Andrade

(09/10/1893 - 25/02/1945)


Completam-se hoje exatos 60 anos que o Brasil perdeu um dos espíritos que mais o compreendeu, sentiu, amou e vivenciou. O poeta, escritor, musicólogo e historiador paulista, sem dúvida um dos pilares fundamentais sobre os quais se ergueu talvez o mais precioso legado do modernismo entre nós: a brasilidade enquanto idéia, conceito, ethos.

Não tenho efetivamente como aqui tecer o retrato desse intelectual, tão poderoso em seu instrumental de crítica, análise e construção poética, quanto apaixonado pelos objetos sobre os quais se debruou. À sua sepultura, mais do que a de qualquer um, caberia o epitáfio que à minha desde há muito predestinei: "puta que pariu, morreu de amor pelo Brasil".

Em lembrança e homenagem, mas sobretudo por nós mesmos, deixo aqui uma de suas mais conhecidas e significativas peças poéticas, expressão maior de tudo o que sinto pelo meu país e que, há tempos, recito regularmente como uma oração:



O poeta come amendoim

A Carlos Drummond de Andrade


Noites pesadas de cheiros e calores amontoados...
Foi o sol que por todo o sítio imenso do Brasil
Andou marcando de moreno os brasileiros.

Estou pensando nos tempos de antes de eu nascer...

A noite era pra descansar. As gargalhadas brancas dos mulatos...

Silêncio! O Imperador medita os seus versinhos.
Os Caramurus conspiram na sombra das mangueiras ovais.
Só o murmurejo dos cre'm-deus-padres irmanava os homens de meu país...
Duma feita os canhamboras perceberam que não tinha mais escravos,
Por causa disso muita virgem-do-rosário se perdeu...

Porém o desastre verdadeiro foi embonecar esta República temporã.
A gente inda não sabia se governar...
Progredir, progredimos um tiquinho
Que o progresso também é uma fatalidade...
Ser o que Nosso Senhor quiser!...
Estou com desejos de desastres...

Com desejos do Amazonas e dos ventos muriçocas
Se encostando na canjerana dos batentes...
Tenho desejos de violas e solidões sem sentido
Tenho desejos de gemer e de morrer.

Brasil...
Mastigado na gostosura quente do amendoim...
Falado numa língua curumim
De palavras incertas num remeleixo melado melancólico...
Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons...
Molham meus beiços que dão beijos alastrados
E depois semitoam sem malícia as rezas bem nascidas...

Brasil amado não porque seja minha pátria,
Pátria acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der...
Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso,
O gosto dos meus descansos,
O balanço das minhas cantigas, amores e danas.
Brasil que eu sou porque a minha expresso muito engraçada,
Porque é o meu sentimento pachorrento,
Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir.

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