quarta-feira, 7 de abril de 2004

S.E.M.P.R.E.


Amigos, sinto que até os quatro cavaleiros do Apocalipse me querem abandonar. Também, pudera. Sei que ando negligente para convosco e dói, sobretudo, e não só quando rio. Mas saibam que não é por falta de disposição em aborrecer-vos, tampouco por falta das minhocas a caraminholar o solo das idéias, antes pela exacerbação recente da extração de mais-valia a partir da minha força de trabalho pobremente prostituída, menos dignamente que nas calçadas.

Mas, para alegrar a vossa Semana Santa , não vos perturbarei com temas acres e descoloridos. Falarei sobre a única coisa sobre a qual realmente entendo alguma coisa.

Sim, porque sabidamente, sou um sujeito que discorre sem muitos problemas sobre uma gama reconhecidamente vasta de assuntos. Eu sou daquele tempo antigo em que a gente aprendia as coisas vivendo aqui um tiquinho, lendo um jornal ali, uma enciclopediazinha pra tirar as dúvidas. Os títulos mais robustos quase sempre a esmo, sem preocupações mais nobres que não os interesses evidenciados pelos humores mais despertos na hora de entrar na livraria.

Mas como todo mundo que entende um pouquinho de um monte de coisas, me estrepo se o convite envolve mergulho em águas mais profundas. Sou um estrangeiro nessa vasta pátria de especialistas capazes de discorrer horas a fio sobre a volubilidade comportamental das mitocôndreas das células hepáticas dos canários belgas machos. É de temperamento. Também danço mais ou menos, toco violão mais ou menos, cozinho mais ou menos.

Há, entretanto, uma matéria, apenas uma única, sobre a qual considero-me conhecedor profundo, ombreado com os grandes “experts” mundiais, exigindo, portanto, respeito e reconhecimento. Uma área pela qual transito, modestamente, com a elegância de um Sócrates, a força de um Rivelino e a autoridade de um Luís Pereira. Trata-se daquele ramo da ciência que estuda o fenômeno “bar” (também conhecido como ‘butiquim”) e todo o sistema de relações que o envolve e implicações que gera, com as sub-áreas afetas a essa complexa seara do conhecimento humano, a saber: o beber (que difere da bebida, em si), o comer, o petiscar, o tratar os garçons e proprietários, o prosear, o discutir, o arrumar encrenca na hora certa, o chegar em casa depois etc., etc.

Como pudestes já perceber, orgulho-me deste conhecimento sólido, vasto e estribado, fruto de prática intensa, reflexão profunda e, sobretudo, incessante intercâmbio científico, posto que talvez em nenhuma outra área do saber o conhecimento tenha um caráter tão coletivo. Papai, por óbvio, partilha desse orgulho, mestre que foi nos meus primeiros caminhos e ele mesmo um PhD reconhecido no metiê. Não se pode dizer o mesmo de mamãe...

O fato que motiva este festivo relato, porém, é diverso, embora conseqüente. É que encontrei nas minhas muitas jornadas por esse universo maravilhoso de papos-furados, álcoois, frituras e mijadas anti-higiênicas, meia-dúzia de criaturas que não só partilham o meu nível de conhecimento, mas sobretudo a paixão derramada e militante pelo engrandecimento desse repositório de sapiência tão brasileira que é o bar. Amantes como eu dos rituais próprios desse espaço, fundaram uma Confraria de iniciados, com estatuto, plano de carreira e liturgias severas: a Sociedade Edificante Multicultural dos Prazeres e Rituais Etílicos - S.E.M.P.R.E . Tudo costurado pelo fio inquebrantável de uma amizade atroz, as reuniões desses profissionais da arte de butecar só podem ser uma usina voluptuosa de idéias, canções, porres, confissões, afetos, chorumelas, discussões, brigas, ou seja, tudo o que cerca uma vida devotada verdadeiramente ao butiquim.

Assim é que, regularmente indicado e admitido “nas regras da arte”, tomarei posse no corrente mês de abril, na condição muitíssimo honrosa e envaidecedora de primeiro confrade não carioca, pelo menos de nascimento e/ou residência. Trata-se, em primeiro, da solidificação de uma amizade fraternal que me uniu a Eduardo Goldenberg, estendeu-se a Fernando Goldenberg e agora espalha-se lenta e fortemente a Vidal (a Lenda), Malavota, Dalton e Zé Colméia. Em segundo, do reconhecimento público de minha inequívoca competência na matéria, evidenciado na concessão do grau de bebum, que mais uma vez orgulha papai e preocupa mamãe.

O que se seguirá em minha vida, daqui por diante, caríssimos, não saberei dizer. As idas mensais e relâmpagos ao Rio serão inevitáveis. Que venham os porres, certos e esplendorosos; as choradeiras, declarações, polêmicas e brigas. Tudo registrado e reduzido a termo, assinado quando lido e achado conforme. Porque nos dias que vão, como bem disse o Poeta, “há, de um modo geral, uma acentuada tendência para se beber”.

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