sexta-feira, 30 de abril de 2004
Pedra Noventa
A música popular brasileira está em festa. Gostaria de dizer o Brasil, mas sabemos que infelizmente, em boa parte por obra dos nossos donos, a nação ainda não se apropriou definitivamente de suas riquezas mais preciosas. Mas os que vivemos e respiramos a brisa privilegiada dessa sonoridade que brota do seio desse povo mestiço estamos com o coração exultante. Afinal, um dos mais fascinantes espíritos surgidos na canção brasileira no século passado completa nove décadas, singrando forte e decididamente as águas desse terceiro milênio.
“Dorival é gênio universal”. E não sou eu que digo: “Pegou o violão e orquestrou o mundo”, emendou o maestro Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, para os poucos que por desconhecimento, despreparo ou inacreditável soberba podem ainda pôr-se a duvidar dessa verdade simples. Conta sempre o magistral Sivuca que, pedindo certa vez algumas partituras estrangeiras para aprofundamento de seus estudos de harmonia ao respeitadíssimo maestro Guerra Peixe, esse lhe teria rebatido: “pra quê? Está tudo lá na obra do Caymmi...”.* Depoimentos insuspeitos de quem tem a autoridade que nos falta e obriga a valermo-nos de argumentos mais extensos.
Dorival Caymmi é um dos pilares fundamentais de um processo amplo que fez a música popular brasileira, em pouco mais de um século, transformar-se de um ajuntamento de manifestações de cunho basicamente tradicional, ligadas à dança e aos folguedos, a uma das mais sofisticadas, expressivas e criativas manifestções da música universal. A dialética essencial que faz com que a o “canto de nossa aldeia” possa ser o mais universal dos cantos, segundo a definição clássica de Tolstói, encontra na música brasileira expressão privilegiada na obra de autores como Luiz Gonzaga, Pixinguinha e Noel Rosa (sem falar, por exemplo, num Waldemar Henrique, que acabou por não distender tanto suas influências por força do isolamento histórico a que a Amazônia sempre foi submetida). Esses baluartes são emblematicamente responsáveis pelo processo de integração dos elementos básicos (rítmicos, melódicos, harmônicos, líricos, dinâmicos) presentes nas manifestações de feições fortemente regionais numa música que pudesse assumir um cunho mais propriamente nacional, ser consumida em larga escala via difusão pelos meios de massificação e ser reconhecida mundialmente por seus traços distintivos gerais. Trata-se, pois, de uma especial manifestação de uma necessária sensibilidade para se reconhecer a riqueza dos elementos musicais espalhados pela tradição musical informal, sua forte presença no quadro geral dos referenciais estéticos coletivos do povo brasileiro e uma habilidade ímpar para promover sua indispensável amalgamação no processo mais geral que permitirá que se forme a idéia (ainda que arquetípica) de uma música popular especificamente brasileira.
Se Gonzaga traz o som árido do sertão cratense para o ambiente urbano do Rio de Janeiro a década de 40, gerando o dançabilíssimo baião; se Noel é quem primeiro tem consciência do processo de massificação do samba carioca, colhendo e adaptando as melodias e versos dos compsitores dos morros às necessidades musicais do rádio, do disco e do carnaval que se tranformava; se Pixinguinha condensa e sistematiza a herança riquíssima da tradição do choro, espalhando um padrão por toda a música popular que se gravaria em disco por quase três décadas; Dorival certamente abriu os caminhos para que à música popular fossem nacionalmente incorporados os temas ligados à vida no mar e à cultura afro-brasileira, o som lamentoso das canções praieiras, o ritmo dos baticuns dos terreiros etc., elementos todos que tem sua manifestação mais evidente e emblemática na sua Bahia de tanta importância e representatividade na história e na cultura brasileiras.
Caymmi foi pioneiro, ainda na década de 30, da prática de cantar suas próprias composições, fato que se tornaria corriqueiro somente a partir dos anos 60. Também introduziu definitivamente no repertório musical brasileiro a fórmula “voz e violão”, que viria mais tarde a encontrar em seu confessado discípulo e conterrâneo, João Gilberto, uma das expressões internacionalmente mais reconhecidas do gênio musical brasileiro. Como este, o mestre também fez da sonoridade singular de seu violão uma marca personalíssima de sua música, antecipando em muitos anos a larga utilização de dissonâncias harmônicas que se faria comum com o advento da bossa-nova (com sentido estético diverso, anote-se).
Outro traço singular da obra caymmiana que se incorpora definitivamente ao padrão musical brasileiro é o seu poder de síntese. Suas canções são sintéticas (se conhecem a pequena jóia “Canto de Nanã”, com 4 versos curtos e, no todo, não mais que umas 30 notas, saberão exatamente do que estou falando) sem excessos líricos ou melódicos de nenhuma espécie, numa época em que a música brasileira, embora caminhando em diverso sentido, ainda não de todo se livrara dos dramalhões lítero-musicais alla Catulo da Paixão e das serestas derramadas entoadas pelos dós-de-peito de plantão. E mesmo sua obra é enxuta, não obstante com possivelmente a maior proporção de grandes clássicos da música brasileira que qualquer outro compositor. Não temeria dizer que no caminho que conduz a música popular das modinhas derramadas do século XIX à síntese minimalista de um João Gilberto, o velho Dorival é um claro divisor de águas.
Na década seguinte (40) faz brotar inúmeras canções delicadas, de acompanhamento simples, para se ouvir no recolhimento, quando o rádio e o disco estão sendo invadidos pela sonoridade dos fox-trotes dançantes das big bands estadunidenses popularizados pelo cinema. E, finalmente, nos anos 50, quando o samba-canção ganhará o status de expressão musical oficial da classe média brasileira, criará alguns clássicos imorredouros do gênero, dominando com perfeição os temas românticos e as sonoridades intimistas, marcadamente urbanas, aperfeiçoando e superando como nenhum outro grande autor do gênero os paradigmas “bolerizantes” dos temas e melodias.
Na década de 70, aclamado pelas (hoje já não tão) novas gerações da música popular, Dorival Caymmi vai assumindo o papel que lhe cabe tão bem de grande patriarca dessa família musical que tantos belos frutos gerou. A resistência que alguns inexplicavelmente ainda lhe oferecem viria de seu sucesso? Viria do fato de ter conseguido viver dignamente de seu trabalho artístico e ter freqüentado os círculos da elite econômica e intelectual? Sim, porque inegavelmente, foi intérprete e compositor considerado e aclamado pelos seus contemporâneos de várias gerações, contrariando um paradigma demagógico que a tantos deleita: o do artista incompreendido e marginal.
Mil vezes salve Dorival Caymmi, nosso buda-nagô! Junto minha humilde prece à da Família Caymmi neste dia mágico e sensacional em que a alegria musical não nos cabe no peito, e rogo ao nosso pai Xangô:
Protege teu filho, obá de Xangô
Seu Obá Otum Onikoyi
Que tanto precisa
precisa de ti
Pro canto compor
Pra canto cantar
O canto em louvor
Das graças da flor
Da terra, do povo e do mar da Bahia
...
Protege teu filho,
teu filho Caymmi
Dorival Obá Onikoyi
E Stella Caymmi
A mãe de Dori, de Nana e Danilo
Que é musa e mulher
que é amor e amiga!...
* Fonte: Songbook Dorival Caymmi, Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1994
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