
"Mandei preparar o terreiro
que já vem chegando o dia
Vou encourar meu pandeiro
preparar pra folia
Quando começar o pagode
Pego o pandeiro
caio na orgia"
(Ditado Antigo)
Hoje é dia de bater tambor. Ontem, 23 de novembro, partiu para a morada dos ancestrais o legendário compositor paulista Toniquinho Batuqueiro.

- Tinha samba no Largo da Sé?
- Nossa Senhora... *
Passou por diversas escolas de samba, como Unidos de Vila Maria e Império do Cambuci, mas afirmava que seu coração pertencia à Unidos do Peruche, que ajudou a fundar junto com o não menos grande Carlão do Peruche. Foi lá, no “Cantinho” feito célebre pela queridíssima Denise - outra grande guerreira que também já está batucando na Aruanda - que o vi pela última vez, há alguns meses, bastante debilitado, mas altivo, grandioso, imponente e elegante como sempre. Ritmista legendário, cantador de belíssimo timbre, viu, conheceu de dentro, participou de literalmente tudo o que aconteceu no samba de São Paulo em cinco décadas. Mas era essa altivez, essa imponência sem soberba, o que mais chamava a atenção no velho mestre. Um homem bonito, eu diria, no alto de seus 80 anos, mesmo alquebrado pela velhice, pela doença e pela cegueira. Talvez mais que qualquer outro que tenha conhecido, via no imenso Toniquinho a encarnação da grandeza do negro, artífice, sábio e guerreiro. Arrastado sob vara aos porões imundos onde cruzou o oceano para nos civilizar, continua até hoje agrilhoado às correntes pesadíssimas de um cativeiro que ainda não se aboliu, “livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela”; a despeito, ou ainda talvez, em função disso, continua a construir espetacularmente sua obra libertadora, educando-nos, pela beleza, pela sabedoria e pela luta, para a compreensão de “que a vida não é só isso que se vê. É um pouco mais.”
- Como é que te descobriram lá no meio de São Paulo?
- Não descobrem ninguém, não, meu filho. Você é que tem que se descobrir. Tem que sair na hora: abriu a roda, você vai e faz. Sem ofender ninguém, você faz seu nome.
Bato daqui meus tambores em honra do mestre-fundador, que foi se ajuntar aos que o precederam. Faz parte, agora mais ainda, da galeria maravilhosa que reverenciamos em cada roda, em cada pagode, em cada batucada: aqueles que nos legaram o samba – suas melodias, versos, ensinamentos, posturas, valores -, a voz mais pujante do coração brasileiro.
Bato daqui meus tambores em honra do mestre-fundador, que foi se ajuntar aos que o precederam. Faz parte, agora mais ainda, da galeria maravilhosa que reverenciamos em cada roda, em cada pagode, em cada batucada: aqueles que nos legaram o samba – suas melodias, versos, ensinamentos, posturas, valores -, a voz mais pujante do coração brasileiro.
Republico em sua homenagem, a seguir, um texto de cinco anos atrás. Mo jubá!
* trecho do excelente documentário que pode ser conferido na íntegra aqui, sobre o qual não ainda não consegui encontrar os créditos, mas que vale demais a pena compartilhar. Assim que os tiver, serão inseridos aqui.
Noite
Olho
para o céu de noite aberta e sem lua. Afasto-me da varanda onde a
luz da arandela teimava em me contrair as pupilas ansiosas das
estrelas todas. Desde menino, a mesma angústia. Mas não será,
mesmo, pela toda vida esse o desassossego? Um querer, assim, que
nunca não se farta?
O
Velho tanto nos prevenira, mas quem somos nós a dar ouvidos a esses
tantos avisos e cuidados? Quem houvera de ter paciência para aqueles
sentidos ocultos, para aquelas tramas todas urdidas a despeito e
contra as evidências? Tudo sabíamos, tudo podíamos, nossos corpos
e olhos e mentes, era só sair por aí devorando a vida, os saberes,
os mistérios. Quais segredos nos freariam a sanha toda? Tola...
Quanto sofrimento não seria poupado se tivéssemos, pelo menos,
aprendido a olhar.
As estrelas muitas outras agora apareceram. O Cruzeiro, as Três Marias, Orion apresentam-se na sua pujança de luzeiros-guias deste lado debaixo do Equador. Ao longe ouço já os tambores em repiques tantos quantos os infinitos pontos de luz que continuam pipocando, mais e melhor descontraio olhos e ouvidos. Evocação de noites outras. Não parece razoável serem outros os batuques se são mesmas as estrelas... Dizem-me que não estão mais ali, que aqueles ecos mortos são tão só uma visita fugaz do passado há muito esvaído. Tempo é igual ao espaço sobre a velocidade, tão evidente. Bem nos dizia o Velho, enquanto houver olhos para ver e ouvidos para ouvir, é em nós que o passado cintila e ressoa, vivo. Muito vivo.
Noite... Que tudo confunde e iguala nas suas sombras; que tanto consolou as injúrias sofridas sob a claridade violenta que tudo distinguia, separava, ordenava. Que tanto assustou os senhores temerosos da vingança da mão negra justificadora, virtuosa. Os senhores temeram a noite e temeram seus baticuns e seus luzeiros exclusivos dos seus sabedores. E os senhores nos quiseram arrancar a noite, pois os sons estacados de sua voz se fizeram insuportáveis aos ouvidos preparados para assimilar e perpetuar a ordem. Os ouvidos que puderam não ouvir o choro e o ranger de dentes não puderam com o batuques das noites quentes prenunciadoras da Grande Noite Negra de todos os atabaques e todas as estrelas.
Por tudo nos quiseram tirar a Noite; trancaram-nos nos cubículos, arrancaram-nos os couros e madeiras, quiseram impedir que os Nossos nos viessem socorrer. Porque os batuques são os mesmos, como as estrelas, e cintilam e ressoam enquanto tivermos olhos e ouvidos. E o passado que vive em nós faria viver os Nossos, com o Raio e a Espada, com o Vento e a Peste a varrer a injustiça da terra dos homens. Entre nós Eles viveriam e nos arrebatariam da claridade que nos tentou massacrar.
Proibidos, trancados, arrancados, vivemos. E vivemos porque viveu em nós, a cada dia, debaixo da claridade mais usurpadora, a nossa Pequena Noite Íntima. Dentro de cada peito negro ela viveu, e ela era toda ela, em cada um, a Grande Noite. Porque na Pequena Noite cada tambor continuou sempre a bater e cada estrela sempre a brilhar, a despeito de toda humilhação, toda violência, toda injustiça, toda... Claridade.
O Velho ensinou. Mesmo que não tenhamos dado ouvidos, agora podemos saber o quanto das noites todas, das Pequenas e da Grande, continuam a nos querer roubar. Os mesmos de sempre. Mesmo que nos tenham feito professar que as luzes que vemos são estrelas mortas e os batuques choram os que não voltarão, hoje podemos saber que é a mesma Noite que nos continuam a querer roubar. Que a sua voz ainda lhes é insuportável e que não querem que vivam os Nossos. Mas nós continuaremos resistindo, continuaremos gritando nossas Pequenas Noites por entre as claridades das horas todas. Até que a Grande Noite venha.
Os tambores já acordaram as estrelas todas, e o céu é agora uma plenitude na qual meus olhos apredidos podem se deixar. Todos os que tombaram estão lá. Estão vivos e brilham e sua voz se faz ouvir na Noite.
As estrelas muitas outras agora apareceram. O Cruzeiro, as Três Marias, Orion apresentam-se na sua pujança de luzeiros-guias deste lado debaixo do Equador. Ao longe ouço já os tambores em repiques tantos quantos os infinitos pontos de luz que continuam pipocando, mais e melhor descontraio olhos e ouvidos. Evocação de noites outras. Não parece razoável serem outros os batuques se são mesmas as estrelas... Dizem-me que não estão mais ali, que aqueles ecos mortos são tão só uma visita fugaz do passado há muito esvaído. Tempo é igual ao espaço sobre a velocidade, tão evidente. Bem nos dizia o Velho, enquanto houver olhos para ver e ouvidos para ouvir, é em nós que o passado cintila e ressoa, vivo. Muito vivo.
Noite... Que tudo confunde e iguala nas suas sombras; que tanto consolou as injúrias sofridas sob a claridade violenta que tudo distinguia, separava, ordenava. Que tanto assustou os senhores temerosos da vingança da mão negra justificadora, virtuosa. Os senhores temeram a noite e temeram seus baticuns e seus luzeiros exclusivos dos seus sabedores. E os senhores nos quiseram arrancar a noite, pois os sons estacados de sua voz se fizeram insuportáveis aos ouvidos preparados para assimilar e perpetuar a ordem. Os ouvidos que puderam não ouvir o choro e o ranger de dentes não puderam com o batuques das noites quentes prenunciadoras da Grande Noite Negra de todos os atabaques e todas as estrelas.
Por tudo nos quiseram tirar a Noite; trancaram-nos nos cubículos, arrancaram-nos os couros e madeiras, quiseram impedir que os Nossos nos viessem socorrer. Porque os batuques são os mesmos, como as estrelas, e cintilam e ressoam enquanto tivermos olhos e ouvidos. E o passado que vive em nós faria viver os Nossos, com o Raio e a Espada, com o Vento e a Peste a varrer a injustiça da terra dos homens. Entre nós Eles viveriam e nos arrebatariam da claridade que nos tentou massacrar.
Proibidos, trancados, arrancados, vivemos. E vivemos porque viveu em nós, a cada dia, debaixo da claridade mais usurpadora, a nossa Pequena Noite Íntima. Dentro de cada peito negro ela viveu, e ela era toda ela, em cada um, a Grande Noite. Porque na Pequena Noite cada tambor continuou sempre a bater e cada estrela sempre a brilhar, a despeito de toda humilhação, toda violência, toda injustiça, toda... Claridade.
O Velho ensinou. Mesmo que não tenhamos dado ouvidos, agora podemos saber o quanto das noites todas, das Pequenas e da Grande, continuam a nos querer roubar. Os mesmos de sempre. Mesmo que nos tenham feito professar que as luzes que vemos são estrelas mortas e os batuques choram os que não voltarão, hoje podemos saber que é a mesma Noite que nos continuam a querer roubar. Que a sua voz ainda lhes é insuportável e que não querem que vivam os Nossos. Mas nós continuaremos resistindo, continuaremos gritando nossas Pequenas Noites por entre as claridades das horas todas. Até que a Grande Noite venha.
Os tambores já acordaram as estrelas todas, e o céu é agora uma plenitude na qual meus olhos apredidos podem se deixar. Todos os que tombaram estão lá. Estão vivos e brilham e sua voz se faz ouvir na Noite.