quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Saudades do Poeta

Armando Catunda*


Eu me pergunto: para se apreciar a boa poesia é necessário conhecer o perfil do poeta? É preciso saber se era gay ou hetero, se era drogado ou careta? Cada vez mais admiro os escritores que não se deixam fotografar, não dão entrevistas, não deixam que ninguém deles se aproxime. No entanto, paradoxalmente, adoro as histórias e entrevistas que nos aproximam dos artistas que admiramos e amamos.

Conheci bem o Jairzinho, ou Jasan Frei Madruga, como assinou vários poemas, ou Jair dos Santos Freitas, o poeta de Rota Rota. Aos quatorze anos, lia Sartre, Sade, Rimbaud, e tomava anfetaminas. Precoce não só no intelecto, mas também no amor e na tragédia, foi nesta idade que em um acidente de carro perdeu a namorada por quem era apaixonado. Jair amava o escândalo, como o amaram Buñuel, e os surrealistas. Amava o tabefe, a bordoada estralada. Muito mais que a violência que mata, a bofetada que denuncia, que desmoraliza o canalha.

Muita gente o temia. O que ele podia aprontar quando bêbado? Tudo. O que se imaginar e mais um pouco. E na cara da polícia, sempre que possível. Jair amava a gargalhada., as histórias cômicas. Chapliniano: os fracos, os porra-louca e os oprimidos em geral, tinham a sua simpatia. Para as autoridades era um pesadelo. Sem papas na língua, do discurso articulado e engajado, passava facilmente às ofensas pessoais, e muitas vêzes às bordoadas. Sempre foi de esquerda, militante e petista roxo. Era grande amigo de Telma de Souza, que quando prefeita o convidou para editar uma revista de cultura. Nasceu então, Artéria, feita com enorme cuidado gráfico pelo seu grande amigo Thomézinho e tendo como co-editor Luiz Antonio Cancello, psicólogo, músico, escritor e grande praça. Jair só trabalhava com os amigos.

Amava as mulheres e por elas muito foi amado. Casou-se formal e informalmente muitas vezes. Vestia-se com umas roupas que ninguém mais usaria. Suas bermudas enormes, caindo. (foi o precursor desta detestável moda) eram combinadas com paletós, chapéus e sandálias. Inexplicavelmente havia elegância nessa bizarria fashion. O que a garotada chama de Atitude. Foi o primeiro homem a usar brinco em Santos, chegando de Paris e tamancos holandeses. Era bonito e admirado pelas mulheres, mas como Elvis ou Chet Baker, passou de galã a um homem inchado e doente nos poucos anos de sua vida. Era Glauberiano, verborrágico, discursivo, apaixonado. Houvesse madrugada para caber tanta conversa, tanta bebida.

Suas lindas músicas hoje são conhecidas de bem poucos. Compunha em 90% das vezes tendo o músico João Paulo Maradei, como parceiro. Tocamos em festivais estudantis, e ele venceu um deles com a música Fênix.1 Podia ser seu apelido. Quantas vezes todos os amigos achavam que ele logo morreria. Chegou a ficar verde, inchado, macilento, mas se recuperava sempre. Bebeu e se drogou em quantidades industriais. Uma vez, nos anos 70, levei Perna, pianista e arranjador, depois de um show, para ouvir suas composições. Perna estava fazendo os arranjos dos lp's de Gal e de Bethânia, tocava na excelente banda de Gilberto Gil, e embora tivesse que acordar muito cedo para ir ao estúdio de gravação foi comigo para a Cidade Universitária, só para conhecer as músicas do Jair. Ele não tocou nenhuma. Disfarçou, puxou conversa, serviu muita bebida, fumou muita maconha, e para coroar, distribuiu alguns ácidos entre os presentes. Fugiu de todos os pedidos para tocar. Na mesma época, alguns professores de literatura da U.S.P marcaram uma reunião com ele para conhecer melhor o seu trabalho poético e possivelmente editá-lo. Ficaram plantados, esperando por ele, que não foi. Mandou o Lima, como dizem os músicos. O sucesso o interessava tanto quanto o dinheiro.

Filho de classe média alta foi se empobrecendo pela vida. Foi funcionário público, em seu único emprego remunerado, arranjado pela família, aonde se aposentou por doença e alcolismo. Em 74, realizou em Santos a Mostra Moeda Nacional, composta por fotografias, pinturas e poesias, junto com vários outros artistas. É desta época uma de suas obra -primas: O Duque dos Brasis. Saímos na porrada duas vezes (foi ele que começou).Aos dezoito anos, fomos presos juntos, após um porre homérico, onde conseguimos que o seu parceiro musical, e grande amigo, João Paulo fosse no Camburão de pijama, tendo acabado de sair da cama para nos aturar. Foi internado algumas vezes, em uma delas, me ligou pedindo para levar um som para ele. Fui de toca discos e quase demolimos o hospital Anglo-Americano ao som de Led Zeppelin. Depois me chamou para a janela, com uma banana nas mãos e esperou a vítima ideal, um executivo apressado, de terno e pasta, a caráter. Uma certeira bananada na cabeça e algumas palavras bem colocadas: vai trabalhar, viadinho? Foram suficientes para tirar o homem de negócios de seu mundo previsível, arrancar sua pose, e fazê-lo atirar-se em uma divertida guerra de frutas, de nossa parte, e pedras, da sua. "É preciso aproveitar minha condição de louco", me disse.

Sogras a quem presenteou com revólveres, fascistas de alta patente com quem trocou bordoadas, presidentes de Câmaras Municipais a quem falou o diabo, policiais, o próprio Secretário de Segurança Pública do Estado a quem agrediu, e por ele foi agredido, mendigos com quem trocou confidências, literatos e artistas a quem presenteou com belíssimos poemas escritos em guardanapos de papel, a lista de excentricidades e histórias saborosas e absurdas é rica e vária, mas acaba afastando as pessoas do que realmente importava ao Jair, e que dele ficou cristalizada: sua poesia. Belíssima, enxuta, que em minha cabeceira divide espaço com Gullar, Cabral, Murillo Mendes. Leio-os com o mesmo prazer. Agora que estranhamente não posso mais pegar o telefone e ligar para ele a qualquer momento para falarmos horas sobre tudo e principalmente poesia, sinto que é abominável que o vasto folclore sobre sua vida pessoal, se interponha entre sua obra e o público. O tempo, que não mais o devasta, agora joga a seu favor. Os causos param de se avolumar, sobra a poesia. Em Rota Rota, o poema que dá o título a seu único livro publicado, sua biografia. Em outro poema, a chave para conhecer sua única ambição: a busca do conhecimento. Uma madrugada em que conversando atravessamos de ponta a ponta as praias de Santos, ele me confessou que essa a fonte de sua angústia, sua ambição impossível. No dia de sua morte, relendo Rota Rota, encontro estes versos dedicados à suas filhas:

fora árvore
lhes legaria frutos
fora terra
lhes legaria árvores
fora deus lhes
legaria tudo o conhecimento.

Poucos artistas tiveram sua vida mais comentada e sua obra menos conhecida. A bur(ro)guesia que ele se deleitava em atormentar, nunca suspeitará do perfeito cavalheiro que se escondia nele, nem da mais refinada elegância de sua palavra esculpida no espaço. Mas paro por aqui, pois a saudade que sinto me faz ficar sentimental, e já escuto a gostosa gargalhada do poeta, me gozando. Enquanto escrevo estas mal traçadas, Jairzinho no céu, o Grande Bar Que Nunca Fecha, ri, bebe e cria, e de quebra, passa a mão na bunda de algum anjo.

[publicado originalmente no blogue de Luís Nassif]

* Armando Catunda é fotógrafo, santista e mantém o blogue Impressões Digitais


4 comentários:

  1. Anônimo7/9/10 21:34

    Tatudonadona (Jair de Santos Freitas)

    O tatu caçou na toca
    Cavou co’as quatro patinhas
    Só pra fazer um cafofo
    Pra morar (casar) com a tatuzinha (bis)

    Eu de tudo fiz um pouco
    Só pra te deixar na minha
    Fiz até ouvido mouco
    Não dei quirela a galinha
    Partilhei contigo a sorte
    E o destino do chão
    Pegado na tua mão
    Adiei a morte fria
    Vivo feliz com o que tive
    E o que vem a cada dia
    Pois hoje tu és o meu norte
    E a luz que me alumia

    O tatu cavou na toca...

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  2. Engraçada essa vida. João Paulo Maradei, citado no texto, era músico da Orquestra Sinfônica de Campinas e pai de uma amiga. Também já não está entre nós, mas suas canções para o teatro infantil viraram um belo disco, lançado em 2006 ou 2007.

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  3. Mano Bruno, as tramas da vida são alteadas por uma secreta Mão...

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