quinta-feira, 28 de junho de 2007

Nós e nós


Deu na coluna Toda Mídia, de Nelson Sá, na Folha de S. Paulo, edição de 26 de junho passado:

“Ontem na Globo, sobre episódio no Rio de Janeiro:
- Grupo espancou e roubou empregada. Os jovens são de classe média alta... Jovens moradores de condomínios de luxo da Barra... Jovens... Os jovens são o centro desta questão perturbadora.
Dias antes na Globo, sobre episódio em São Paulo:
- Quadrilha aterrorizou moradores do Morumbi. Assalto a casa de luxo... Vários bandidos.


No mesmo jornal, mesma edição, caderno Cotidiano, a entrevista do pai de um dos agressores. Os trechos em itálico são as falas do sujeito. Intercaladamente, arrisco uma espécie de “tradução”.

"Não é justo prender cinco jovens que estudam, que trabalham, que têm pai e mãe, e juntar com bandidos que a gente não sabe de onde vieram. Imagina o sofrimento desses garotos. "

Tradução: sabem, sim senhor, de onde vieram, mas não têm coragem de dizer com todas as letras “que vieram dessas favelas aí”. É melhor que a “gente de bem” ignore esses lugares escuros, esses “outros lugares” como um nada informe e desconhecido, bem longe e apartado do nosso mundo fechado de pessoas de caráter.

"Eles cometeram erro? Cometeram. Mas não vai ser justo manter crianças que estão na faculdade, estão estudando, trabalham, presos. É desnecessário, vai marginalizar lá dentro. Foi uma coisa feia que eles fizeram? Foi. Não justifica o que fizeram. Mas prender, botar preso, juntar eles com outros bandidos... Essas pessoas que têm estudo, que têm caráter, junto com uns caras desses?"

Tradução: os nossos crimes, então, são “erros, “coisas feias”, mas nada justifica prender, coitados. Já os crimes “de uns caras desses” são monstruosidades hediondas que merecem o encarceramento de menores, a pena de morte, a prisão perpétua. Caráter é ma coisa com a qual se nasce, que vem de estirpe. Sabemos bem quem é da laia que comete crimes e os de boa cepa que podem "errar", nunca poderíamos confundir as coisas.

"Folha - Mas o sr. acha que eles poderiam estar embriagados ou drogados?
Bruno - Mas é lógico. Uma pessoa normal vai fazer uma agressão dessa? Lógico que não. Lógico que estavam embriagados, lógico que podiam estar drogados.
"

Tradução: meus filhinhos, é claro, são incapazes de uma brutalidade. Nós não somos como “eles”, nós estudamos, trabalhamos, temos caráter. Mas a droga, esse demônio que mora no lado desconhecido e que se apossa de seus corações e suas mentes, os transforma em “outros”, esses sim capazes de inomináveis barabaridades. Os outros. Nós, nunca.

"Eles não são bandidos. Tem que criar outras instâncias para puni-los. Queria dizer à sociedade que nós, pais, não temos culpa nisso."

Aí (e já chega!) a tradução tem que ser um pouco mais longa.

O verdadeiro apartheid cultural sobre o qual se assenta ideologicamente a elite brasileira smpre careceu da rejeição aos padrões populares de sociabilidade para manter sua psiquê social intacta e livre das culpas de outro modo insuportáveis. Historicamente, portanto, assume relevância seu desejo recorrente em se distinguir do “povo”, e assim faz questão de pautar seu modo de vida pelos modelos importados, bem livres da contaminação das formas de vida engendradas pelos “outros”.

O substrato dessa distinção é uma epistemologia capenga, reducionista, que nega as formas tradicionais e milenares de sabedoria em prol de um padrão do discurso dito “racional”, reduzido à operacionalidade lógica que lida fundamentalmente com a distinção de “mesmo” e “outro”: “A” e “não A”. Por outro lado, uma certa moral baseada em um tipo de psicologia maniqueísta e repressora da vontade que opera correspondentemente com a distinção de “desejável” e “não desejável”. Obviamente que esta divisão leva a impasses todas as vezes que as categorias não corresponderem, ou seja que o desejo recair sobre o que pertence à outra banda, ao “outro lado”, o lado obscuro que teoricamente deveria estar completamente apartado de “nós”; toda vez que a esfera daquelas coisas que objetiva e claramente apresentam-se ao entendimento definidas como erradas, abjetas, contrárias à moral, ruins, nefastas etc. transponham a fronteira do “não desejável” para dentro do limite dos “nossos” bastiões de fortaleza e virtude.

Então, a pseudo-razão reducionista, utilitarista da classe dominante remete a uma necessidade de diferenciar suas crenças, convicções, conceitos, desejos etc. daquilo que se nos apresenta como “o horror”. Em último plano, de estabelecer que “aquilo” faz parte de uma esfera, de uma realidade, de uma natureza, de uma substância diferente da nossa. O horror tem que se definir como a negação de nós mesmos, em todos os sentidos. Nosso intelecto que opera por dualidades excludentes não nos permite, pois, em nenhuma dimensão compartilhar pontos de contato com aquele comportamento que repelimos de maneira absoluta. O horror tem que ser, em todos os sentidos, o outro.

O raciocínio da classe dirigente predadora que se apropria do país e se nutre do sangue e do suor da imensa massa dos trabalhadores que constroem esta nação sempre fez questão absoluta de frisar essa distinção: nós e os outros. Sempre se colocou acima e em apartado do “povo”, sempre rejeitou seus modos de falar de vestir, dançar cultuar suas divindades. Esse discurso que assume tons sombrios e bizarros numa situação extrema como a em questão, não é na essência diferente daquele contra o qual não cansamos de nos bater e denunciar: a rejeição das formas singulares e dos padrões culturais do povo brasileiro. Então, se no caso específico a distinção é entre “nós, os de bem” e “eles, os bandidos”, ela só é possível e legitimável ideológicamente porque a sociedade brasileira se construiu lastreada na divisão essencial entre “nós, os letrados, instruídos, de bom gosto (e brancos, católicos etc.)” e os “outros, atrasados, ignorantes, cafonas (e pretos, mestiços, animistas etc.)”. Nesta esteira, todos os males da nação, obviamente, estão relegados “à banda de lá”. É lá que reside a pobreza, a doença, a ignorância, a maldade, o atraso, a indolência.

Portanto, mais grave do que a agressão e a violência em si mesmas, o discurso do pai que procura aplacar a cisão que o episódio evidencia nos fundamentos ideológicos dos nosssos padrões de sociabilidade denuncia gravemente que a sociedade brasileira precisa urgentemente empreender a superação da exclusão econômica, cultural, política, social e ideológica entre “uns” e “outros”. Somente uma razão dialética e dialógica, que não opere exclusivamente pelos padrões lógicos elementares do entendimento, por dualidades excludentes, pode dar conta de um tal conflito que põe em xeque suas próprias estruturas, sua integridade, sua capacidade de enfrentamento das questões mais profundas que se lhe apresentam. Somente uma razão política que se desapegue da crença absoluta nos mecanismos formais de decisão, gestão e administração dos conflitos, e empreenda a mais difícil tarefa na história da nação brasileira, no sentido de promover verdadeiramente o entendimento e a integração.

É claro que essa superação dissolve "perigosamente" as fronteiras entre “A” e “não A”, entre o “eu” e o “resto” (ou “não-eu”), entre o “certo” e o “errado” (ou “não certo”). Proscrita a separação essencial, abre-se a possibilidade de que eu compartilhe pontos substanciais com o horror que me repugna. Em última conseqüência leva à aceitação que o “outro” também faz parte de mim e eu dele, ou, dito de outra forma, aquilo que tanto me repugna, em certa medida faz parte de mim mesmo. Esta consciência de que “o mal” não está fora de nós, mas que deve ter as raízes investigadas nas nossas próprias práticas, convicções, sentimentos e desejos, talvez seja a única saída para os impasses essenciais de nosso tempo. Sem entender o horror, apenas apartando-o definitivamente de nós mesmos, resta-nos (e é mais fácil!) a condenação pura, simples e absoluta. O reconhecimento de que ele é parte da nossa natureza é o único caminho – ainda que tão doloroso - para o entendimento e a superação.

11 comentários:

  1. Sr. Fernando, quantas vezes já foi assaltado? Pelo jeito, nenhuma. Eu já fui várias vezes e apenas uma, das quatro que vi a cara dos cidadãos, os marginais não tinham pele clarinha e usavam roupas como as minhas. Portanto meu caro, nunca poderia dizer que bandido não tem todos os dentes na boa, são negros, pardos, amarelos, vermelhos, azuis ou muito menos classificar as roupas que usam. Quando me refiro a cara de bandido estou me referindo aquela parte do corpo que fica na cabeça, conhecida também como rosto. Você pode nunca ter reparado, mas todos os bandidos tem uma feição em comum, talvez até indescritível. Nunca fui assaltada por caras de feições amenas, serenas, felizes... todos tinham uma sobrancelha enrugada, lábios frizados e um olhar furtivo. Talvez tudo isso seja inicência minha. Talvez seja realmente ignorância sua. Não acredito que aqueles rapazes que espancaram aquela mulher tivesses essas feições. Acredito que no momento estavam todos rindo, fazendo piadas, debochando daquela cidadã.
    Quando quiser discutir os meus pontos de vista Sr. Fernando, peço por favor para não comentar no blog alheio, acho falta de respeito com o dono do blog. Pode entrar no meu e comentar ali.

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  2. Fernandão, é de um nojo sem precedentes esse depoimento do tal pai das "pobres crianças". E a imprensa tenta, a todo custo, justificar esse discurso separatista.

    Não sei se você viu, mas a Globo irá falar da favela na próxima novela. Fagundes é o líder comunitário e - pasmem - Marília Gabriela fará as vezes da tia da merenda e que tais...

    Veja que estão tirando do povo até a sua favelinha querida, a única coisa que ainda lhe dá dignidade e sentimento de posse.

    Sobre a "cara de bandido" citada aí em cima, lembrei-me - a autoria não é tão nobre, mas foi a que primeiro veio à cabeça - de uma letra do Gabriel, o Pensador. Lá pelas tantas ele manda:

    "me diga se você discriminaria
    um sujeito com a cara do PC Farias
    não, você não faria isso não
    você aprendeu que o preto é ladrão"

    Veja como faz sentido não renovarem concessão PÚBLICA de empresas nefastas...

    Abraços! E sexta tamo lá!

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  3. Srta. Paula, das vossas vossas confusas e mal escritas observações, depreendo, de duas, uma: ou és uma pessoa racista e lombrosiana, o que ensejaria um nojo abjeto e um desprezo absoluto por vossa pessoa; ou apenas falta-lhe habilidade com as palavras, mesmo. No primeiro caso, merecerias apenas a lata de lixo da História, onde jazerão os corpos sob o cortejo que nos há de libertar. Na segunda hipóete, que parece mais plaus[ivel, quando aprenderes a escrever, debateremos idéias.

    Quanto a comentar, comentarei onde e quando quiser - pois quem escreve publicamente expõe-se a réplicas públicas - e não será uma fedelhamal saída dos cueiros a me patrulhar. Se os donos dos blogues se sentirem incomodados por qualquer comentário meu, têm a opção suprimí-lo, o que não parece ser o caso de meu querido amigo Bruno Ribeiro.

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  4. Paula, você diz:

    "Talvez tudo isso seja inocência minha. Talvez seja realmente ignorância sua."

    Com certeza absoluta não é ignorância do Fernando. Você, num comentário infeliz, caracterizado pelo preconceito ou pela inocência mesmo, deu a entender tudo o que o Fernando disse. E esse negócio de franzir a testa, de lábio rachado?

    Outra:

    "Não acredito que aqueles rapazes que espancaram aquela mulher tivesses essas feições."

    Você se refere a esses crápulas como rapazes. Esses bandidos que espancam e roubam R$ 47,00 de uma trabalhadora. São os rapazes, bonitos, bem cuidados e de boa família...

    Responda-me apenas para eu tentar entender seu raciocínio: o falecido Coronel Ubiratan e o Fernandinho Beira-Mar. Qual deles tem essa tal feição? Os dois, um dos dois ou nenhum dos dois?

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  5. Paula, minha filha: seu discurso é nojento, calcado no mais-que-defasado Lombroso, que rima com asqueroso, adjetivo que lhe serve a serem reais as intenções que emergem de seu comentário sujo.

    Não ouse chamar a sapiência em forma de gente de ignorante. Recolha-se a sua insignificância.

    Agora... esse convitinho no final, hein... "Pode entrar no meu"...

    Que nojo.

    Ele NÃO vai entrar no seu porra nenhuma.

    E se a Sra. insistir, minha irmã amada vai lhe bater tanto que a Sra. há de ficar com uma carinha bem ruinzinha...

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  6. Comparo o discurso esquálido do tal Ludovico ao ato atroz de seu filho. É como quem diz:

    Você é apenas uma empregadinha Sirlei. Deixe de alarido e volte a fazer o seu.

    Esse cara também merece o xilindró.

    Não passarão!

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  7. Sempre passo por aqui apenas para ler os bons textos mas dessa vez não posso deixar de me manifestar sobre o que foi dito pela Paula. A teoria de Lombroso, sustentada em sua repugnante obra O Homem Delinquente, surgiu em um momento em que a burguesia, que não mais se preocupava com uma nobreza decadente, buscava “defender-se” das classes menos favorecidas, que para eles representavam criminosos em potencial. Em suma, as idéias de Lombroso e de outros positivistas do seu tempo serviram unicamente para defender uma classe privilegiada fornecendo um instrumento teórico para legitimar a exclusão social. Eram desumanos que fingiam não aceitar que o homem age de acordo com seu livre arbítro e suas convicções morais (o que independe "daquela parte do corpo que fica acima da cabeça, o rosto"). Lamentavelmente é isso que me parece estar fazendo a Paula.

    Arthur Mitke

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  8. Eu, por exemplo, morro de medo do homem de bem que paga em dia seus impostos (e acha que o MST é uma quadrilha de foras-da-lei), do rapaz de feições amenas (que estupra mas não mata), do bonitão da academia de ginástica (que vende ecstasy nas baladas da faculdade e sai para promover quebra-quebra em porta de boate), do deputado careca e bonachão (que desvia dinheiro público e manda matar adversários políticos), do empresário engravatado (que explora seus funcionários, pagando-lhes um salário de merda e acabando com a vida de familias inteiras para sustentar o seu luxo). Todos são canalhas e bandidos e deveriam estar nas páginas policiais dos jornais se não fosse o corporativismo da classe média alta que detém o controle da informação e das leis nesse país.

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  9. Szegeri,

    É isso mesmo. Concordo. Essa divisão existe mesmo e é fortemente estimulada pela grande mídia. Como diz o filho de uma amiga minha, na TV, pobre é "menor" e rico é "jovem". E a mídia não faz isso por preconceito, não. É ideológico o negócio. Aliás, a mídia é um grande negócio. Afinal, os anunciantes que a sustentam, têm como foco os consumidores branquinhos, bem vestidos, com todos os dentes. Justamente esse perfil que a Paula identifica como os que não têm cara de bandido. O problema não está no fato dela usar esse critério para identificar quem é do bem ou do mal. O problema é entender o motivo dela usar esse critério. E aí, não sejamos ingênuos, a esmagadora maioria da sociedade utiliza esse critério. E o que é pior ainda, é esse o critério utilizado pela polícia. Por isso, se você for preto, tiver algum dente faltando, usar uma roupa puída, enfim, se não tiver essa aparência limpinha, caoloque as barbas de molho pois, mais dia, menos dia, vai levar umas bordoadas da polícia.

    Quanto às declarações do pai do sujeito, nem vale a pena comentar. Seria muita ingenuidade esperar alguma coisa diferente vinda dele.

    Paula,

    Não sei se você é racista ou ignorante. Pouco me importa. Nem te conheço. O importante é que pro segundo problema tem cura. E fique tranqüila, que não vou ficar te dando bordoada, mesmo porque, nem acho muita graça nisso. A questão é que, da maneira que você colocou a coisa, lá no blog do Bruno, fica muito evidente esse critério de divisão entre as pessoas de bem ou do mal. E, de fato, concordo com o Szegeri, teu texto tá meio confuso. Mas pra isso também tem solução fácil. Basta um pouco de exercício e muita leitura. Tá resolvido.

    E finalmente, quanto a essa questão de inocência ou ignorância, todos nós temos um pouco das duas. Sempre. Ainda bem!

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  10. Ufa, ainda bem que para o meu problema ainda tem solução! Mas, prefiro encerrar a discussão por aqui, ao ivés de enche-los com meu texto ruim que não consegue ser entendido. Isso daria uma boa discussão para uma mesa de bar, regada a cerveja.
    Fernando, se me permite a intimidade, gostei dos seus textos. Pelo menos suas críticas me renderam mais um blog a visitar nas minhas tardes vazias. Quem sabe assim poderei aprender escrever melhor?! Aliás, feliz aniversário. (atrasado eu acho!)

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  11. Opa,

    100 querer adentrei ao portal desta discussão !

    só passei para parabenizar o fernando pelo trabalho de hermenêutica, gostei mais da tradução que da fala do crápula-pai.

    sempre em frente.

    Ah! Blog não é Jornal Nacional, aqui fala-se e opina-se, há divergêcia e construção.

    parabéns outra vez.

    Biblioafro.

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