quarta-feira, 19 de abril de 2006

Como morrem os espíritos

Hoje, 19 de abril, a índia pankararu Maria das Dores Oliveira, de 42 anos, defende tese de doutorado na Universidade Federal de Alagoas e será a primeira índia a ser reconhecida pela sabência oficial com aquele grau acadêmico. Logo os índios, tão, mas tão mais sabidos do que nós...

Maria das Dores é de uma aldeia no município de Tacaratu, Pernambuco, conterrânea do meu querido mano Julio Vellozo. E sua tese é sobre a língua Ofayé, um idioma indígena do Mato Grosso do Sul que conta atualmente com somente 11 falantes vivos. Em parceria com a professora ofayé Marilda de Souza, nossa doutora organizou uma espécie de gramática didática, em forma de cartilha, para tentar interessar as crianças e jovens pelo aprendizado da língua, que de outro modo se extinguirá para sempre.

No Brasil atual, sobrevivem cerca de 180 idiomas indígenas (o que corresponde somente a algo entre 15 e 20% do total de línguas aqui faladas em 1500), das quais cerca de 60 têm menos de 100 falantes e outras 110 menos de 400. A maioria das sobreviventes pertence às 10 famílias do tronco tupi, metade das quais concentradas em Rondônia (possível ponto de partida da migração tupi para a zona litorânea brasileira), um estado sabidamente ameaçado pela expansão da fronteira agrícola, pelo desmatamento, garimpos ilegais e conflitos fundiários.

Uma língua morre completamente quando morre o último de seus falantes. Pode ficar registrada como vocabulário e formas gramaticais, mas se perde o referencial simbólico subjetivo, o jeito de pensar e de viver que ela exprime, que só é adequadamente transmitido justamente através dela. Foi Merleau-Ponty - que não conhecia os índios: era francês e doutor - quem demonstrou que ninguém consegue expressar-se em uma língua estrangeira, por mais que a domine, por mais que esteja acostumado a ela e aculturado por ela, da mesma forma que em seu idioma natal. Nem mesmo a minha comadre Dani. Porque a língua nativa é o que dialeticamente determina e exprime um modo próprio de compreender e representar o mundo que se prega ao espírito como um filtro, cravando como um molde todas as categorias de intermediação entre o pensamento e essa coisa estranha que se convencionou chamar realidade.

Não basta, portanto, os jovens ofayé aprenderem sua língua. É preciso que as crianças ofayé que vierem a nascer sejam educadas no idioma e na vida pelos seus mais velhos, pois somente assim ficará nelas impressa essa semente imaterial e tão presente, encarnação sensível e real do espírito de um povo. Isso num país que não tem apreço e não consegue defender nem mesmo nosso combalido e atacado português brasileiro, tão peculiar, tão sonoro, tão enriquecido, menina dos olhos de poetas como Mário de Andrade e Ruy Barata, e de vaqueiros solitários como nosso bom Aldo Rebelo.

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