quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Não põe corda no meu Bloco


Conversava por esses dias com meu dileto amigo Luiz Antonio Simas, traçando uma antárctica mofada e uma sardinha frita no Bode Cheiroso. Falávamos, nas brechas das coisas que realmente importam, de como em outros tempos o inimigo visível da tradição era o discurso “modernizante”. Nos estranhos dias que correm, entretanto, é recorrente o uso da própria tradição com vistas a absorver, digerir, neutralizar e, assim, liquidar toda a força motora dessa mesma tradição.

E eis que voltando aos dias sem antárcticas e sem sardinhas deparo de cara o engraçadíssimo seminário – várias pessoas já me recriminaram, dizendo que a coisa é grave, mas eu, infelizmente, não consigo parar de rir - “Carnaval de rua”, a se realizar na próxima semana, por iniciativa da Prefeitura de São Paulo. Breve aperitivo dos participantes, segundo a programação oficial divulgada pela secretaria de cultura:

“Felipe Ferreira - Possui graduação em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1993), mestrado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996), doutorado em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002) e pós-doutorado em Letras pela Université Paris III - Sorbonne Nouvelle.”
(um pouco de sabedoria pra nos esclarecer)
“Guilherme Belitani - atualmente é Secretário de Desenvolvimento, Turismo e Cultura, além de sócio diretor-geral e professor da Faculdade Baiana de Direito.”
(desenvolvimento, turismo, direito: temas candentes na alma de qualquer folião)
….
"Domingos Leoneli - Publicitário e atual Secretário de Turismo da Bahia."
(o que seria do Carnaval sem os publicitários e sem a Bahia???)
“Tania Fayal - Umas das criadoras [sic] do Carnaval de Rua do Rio de Janeiro.”
(eu juro que não estou inventando! Tá escrito lá...)
….
“João Luiz Passador - Coordenador do Gpublic – Centro de Estudos em Gestão e Políticas Públicas Contemporâneas. Possui graduação em Administração pela Fundação Getúlio Vargas, com especialização na Università Comerciale Luigi Bocconi (Milão, Itália), graduação em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, mestrado em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas e doutorado em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas. Atualmente é professor associado do Departamento de Administração da Faculdade de Economia Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.”
(esse eu fiz questão de transcrever por inteiro)
“Sergio de Souza Merlo - Coordenador Operacional da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Bacharel em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pela Academia de Polícia Militar do Barro Branco e em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, USP. Mestre e Doutor em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar.”
(...)

E vai por aí. Seu Carlão do Peruche tá perdido nessa também, com mais uns dois ou três que alguma vez na vida talvez tenham saído de casa só com uma fralda de bebê. Eu aqui, ingenuamente, enquanto só tinha batido os olhos meio de relance no título do seminário, preparei até um curriculozinho que achei que dava pra concorrer:

Nome semi-completo: Emília Mônica Smurfete Nega-maluca Curupira Sereia Pirilampo de Tejipió
Profissão: malocada, 'pra não dar o que falar'...
Currículo: não se lembra de quase nada, por estar quase sempre de porre. Das vagas lembranças, uma particularmente cara era de tomar ônibus de olho fechado e descer na primeira batucada que encontrasse. Testemunhas dão conta de que dormiu mutuamente escorado em Cláudio Camunguelo, no meio da barafunda da dispersão da Bateria da Portela.

Mas a Stefânia me desencorajou logo. Depois entendi.

Eu sonho com o dia em que o prefeito, os secretários, as instituições, a academia, os publicitários, legisladores, polícias e as putas todas que os pariram reconheçam, simples e finalmente, que o Carnaval é feito dos quatro dias em que eles - e seus títulos, propriedades, cargos, graduações e pós-graduações - não têm IMPORTÂNCIA ABSOLUTAMENTE NENHUMA. Que o Carnaval é, por excelência e por definição, a subversão e supressão da ordem cotidiana de hierarquias, poderes, mandos e ordenações. É o império do descompromisso, da incerteza, do nivelamento, do aleatório, da rua. Do HOMEM COMUM.

Eu sonho, simplesmente, com o dia em que eles nos deixarão em paz. Aí haverá Carnaval de novo.