quarta-feira, 27 de setembro de 2006



Samba de Dois-Dois

Roque Ferreira e Paulo César Pinheiro


Esse samba é de dois
De dois, é de Dois-Dois
De dois, é de Dois-Dois
De dois, esse samba é de dois

Pra puxar carroça grande
É melhor um par de bois
Se juntar mulher com homem
Vai sair mais um depois
Mas quem vai com sede ao pote
Às vezes vem logo dois
É um berço pra dois filhos
Camisola de filó
É o dobro de trabalho
Desses pais eu tenho dó
Mas quando se tem gêmeos
Acho que é melhor
Que na roda da vida
Nenhum deles brinca só

Festa dos Ibejês
Dia dos Erês
Vem Dadá e Ogum
Doú chega com Neném
Tem beiju, quindim
Acaçá, mel e xerém
Caruru, xinxim
Tem pipoca, abará e aberém

Quando eles vêm, eles vêm assim
É de Dois-Dois
Crispiano vem com Crispim
É de Dois- Dois
Onde vai um vai o seu irmão
É de dois em dois
Se vem Doum, também vem Romão
É de dois em dois
Dia de Cosme e Damião
É dia de louvar Dois-Dois!

terça-feira, 26 de setembro de 2006

Testamento-libelo de partideiro


"Pra minha mulher deixo amor, sentimento
Na paz do Senhor
E para os meus filhos deixo um bom exemplo
Na paz do Senhor
Deixo como herança força de vontade
Na paz do Senhor
Quem semeia amor deixa sempre saudade
Na paz do Senhor
Pros meus amigos deixo meu pandeiro
Na paz do Senhor
Honrei meus pais e amei meus irmãos
Na paz do Senhor
Aos fariseus não deixarei dinheiro
Na paz do Senhor
É... mas pros falsos amigos deixo o meu perdão
Na paz do Senhor"

(Candeia)



Ainda que demos sorte, e as sabedorias todas índias tão várias e africanas tantas puderam temperar e amalgamar esse olhar brasileiro tão privilegiado, tão mais capacitado ao entendimento dessa bagunça toda que os bichinhos de duas pernas andam perpetrando pelo mundo. Mas, apartado do povo brasileiro e mesmo, na maioria das vezes, de costas pra ele, a pequena minoria “esclarecida” segue se arvorando em dona da razão e do entendimento, em senhora dos conceitos e dos destinos. Se essa pequena casta, porém, não representa o modo de ser do brasileiro, antes tendo historicamente feito tudo para que esta singularidade não se afirmasse, não existisse, ela sempre tratou de se encastelar nos jornais e universidades, nos cargos públicos e nas “sociedades organizadas”, agindo, pensando e falando – como se pudesse! - em nome do povo brasileiro. É por isso que, via de regra, nos livros bem vendantes, seminários badalados, reuniões intermináveis, artigos de jornal não vamos encontrar o Brasil; no máximo, essa burleta grotesca urdida pelos usurpadores.

Desta minoria tristemente fazemos parte, e por mais que nos queiramos livrar, por mais que ansiemos uma vida simples e natural, pesa sobre nós a herança de soberba e prepotência que tudo quer dominar. Somos filhos de um sujeito que se definiu pensante e transcendental, independentemente de qualquer experiência concreta do mundo. De um espírito que se pretendeu absoluto, encarnação da razão e sentido da história, senhor da idéia e da existência. Carregamos em nós essa pretensão usurpadora essencial, de ser o que não somos; não de querer mais, o que seria em tese legítimo, mas sobretudo de achar que pode o mais.

O século é da grandiloqüência, das grandes causas, das decisões fundamentais (ou fundamentantes, ou fundamentalistas, como queiram). Estou sinceramente farto de carregar sobre os ombros, sozinho, o destino da humanidade. É certo que o materialismo histórico padeceu da mesma doença, do mesmo sentido totalizante, filho do século que é. Mas a dialética nos ensinou a História como experiência essencialmente coletiva, a razão como uma construção necessariamente de muitos, de todos. Toda pretensão individual é irracional e, portanto, anti-histórica! Qualquer conceito que se abriga no sujeito renuncia ao conhecimento e decreta a ditadura farsante das positividades.

A vida é difícil, tenho que me preocupar com o aquecimento global, com a camada de ozônio, com as animosidades entre judeus e árabes, com os delírios do Sr. Bush. Tudo depende de mim, a chuva ácida, a fome em Burkina-Faso, o desempenho do ataque do Palmeiras, a reforma do Judiciário, o reajuste salarial da minha categoria, de todas as categorias. Depende de mim? Depende de mim uma ova! Quer dizer, depende mas não depende. Como animal pensante e social, está afeito à minha seara de responsabilidades ter consciência do que se passa no mundo, tentar entendê-lo minimamente, cuidar dos que estão no meu entorno, agir segundo esse entendimento e esse cuidado. Não muito mais que isso.

Temos urgentemente que renunciar à pretensão de decidirmos os destinos do mundo. É imperioso reconhecermos que nossas idéias particulares sobre todas as coisas são, isoladas, prejudiciais ao funcionamento da humanidade. E elas só não estarão isoladas se conviverem, necessariamente com suas negações, pois só assim caminha a experiência humana do mundo. É por isso que todo aquele que permanece atrás do seu lap top, ditando opiniões e regras, policiando comportamentos e cobrando a adequação aos seus decretos distorcidos constrói a sua pequena ditadura particular, mãe e mantenedora de todas as formas de opressão. E é bem fácil conhecer, de longe, os pequenos ditadores. Seu discursinho conformador da realidade normalmente começa pela defesa intransigente da democracia, vale dizer, da possibilidade de cada ditaturazinha individual sobre a conformação do mundo se fazer respeitar na sua mediocridade essencial.

Sempre construí minha vida publicamente: escrevendo, debatendo, fazendo música, fazendo política, combatendo meus pequenos combates. Militando. Meus erros e acertos são conhecidos dos que se acercam de mim. Foi pública minha adolescência católica, no debate intelectual intenso e na dedicação pastoral irrestrita. Sabida minha participação na fundação do PSDB, minha proximidade participativa e atuante junto ao PT, a militância estudantil e na organização da minha categoria profissional. Os que me conhecem sabem como pus abaixo todo meu arsenal de idéias sobre a vida lendo Hume e Kant, sabem do meu marxismo arraigado, minha paixão pela teoria crítica, de tudo o que sobrevive em mim de católico, de tudo quanto busco e tento aprender no tesouro de sabedoria que campeia pelo Brasil, América Latina, África. Sabem da minha opção de engajamento filiado ao Partido Comunista, bem como todas as minhas críticas e discordâncias, que até hoje implicaram em debate e nunca dissidência. Tudo me podem imputar, menos dissimulação. Por que me cobram, então? “Eu falei abertamente ao mundo; eu sempre ensinei na sinagoga e no templo, onde todos os judeus se ajuntam, e nada disse em oculto. Para que me perguntas a mim? Pergunta aos que ouviram o que é que lhes ensinei; eis que eles sabem o que eu lhes tenho dito.” (Jo 18, 20-21).

Abaixo, pois, os desvarios megalomaníacos. Quem vota no Lula não é arauto da bandalheira e nem detrator da ética na condução dos negócios públicos. O que opta pelo Alckmin não é baluarte do moralismo udenista que ele pode representar e muito menos o eleitor da Heloísa Helena é um sebastianista messiânico inimigo da liberdade sexual das mulheres. Da mesma forma que os eleitores do Cristóvão não são os salvadores do mundo, “vinde a mim as criancinhas”. São pessoas, são forças políticas, são organizações, todas absolutamente inseridas e determinadas historicamente por uma infinidade de circunscriçõess. O eleitor faz uma opção, que é política, que é histórica, que é circunstancial. Não faz um juramento de fé, não imola sua alma, não faz votos perpétuos nem promessas de fidelidade “até que a morte os separe”. Faz escolhas circunstanciadas. Os mesmos que hoje se escandalizam com a corrupção desnudada são os que ajudaram, satisfeitos, a carregar a bandeira da “honestidade” como proposta política, como traço de distinção “dos corretos”. Os mesmos de sempre, prontíssimos tanto para alardear de suas janelas a impudicícia das filhas dos vizinhos, quanto para expulsar de casa a sua própria, carregadora que se fizer do estigma do “outro”, do impuro.

Este texto, que propositadamente pode ter feições de testamento intelectual, é muito mais um salve ao bom debate das idéias e um libelo contra as pretensões totalitárias desses democratazinhos de merda, cagadores de pseudo-conceitos e regrinhas de pensamento bem comportadas. Estou farto dos covardes e enrustidos, idumentária favorita dos opressores. Sou apenas um indivíduo. Um cidadão que pensa o seu mundo com uma lógica que não é só sua, que canta os seus sentimentos com um canto que não é seu, é de muitos, é de um povo. Que cuida de sua família, ganha o seu dinheiro, cumpre razoavelmente seus deveres, tem os seus inúmeros erros e defeitos e procura combater os seus combates.

Que sabe que está lutando e que quem luta tem que estar pronto para tombar. O combatente que não tem sentimento da própria morte é um louco ou um farsante.

sexta-feira, 22 de setembro de 2006

Noite

Olho para o céu de noite aberta e sem lua. Afasto-me da varanda onde a luz da arandela teimava em me contrair as pupilas ansiosas das estrelas todas. Desde menino, a mesma angústia. Mas não será, mesmo, pela toda vida esse o desassossego? Um querer, assim, que nunca não se farta?

O Velho tanto nos prevenira, mas quem somos nós a dar ouvidos a esses tantos avisos e cuidados? Quem houvera de ter paciência para aqueles sentidos ocultos, para aquelas tramas todas urdidas a despeito e contra as evidências? Tudo sabíamos, tudo podíamos, nossos corpos e olhos e mentes, era só sair por aí devorando a vida, os saberes, os mistérios. Quais segredos nos freariam a sanha toda? Tola... Quanto sofrimento não seria poupado se tivéssemos, pelo menos, aprendido a olhar.

As estrelas muitas outras agora apareceram. O Cruzeiro, as Três Marias, Orion apresentam-se na sua pujança de luzeiros-guias deste lado debaixo do Equador. Ao longe ouço já os tambores em repiques tantos quantos os infinitos pontos de luz que continuam pipocando, mais e melhor descontraio olhos e ouvidos. Evocação de noites outras. Não parece razoável serem outros os batuques se são mesmas as estrelas... Dizem-me que não estão mais ali, que aqueles ecos mortos são tão só uma visita fugaz do passado há muito esvaído. Tempo é igual ao espaço sobre a velocidade, tão evidente. Bem nos dizia o Velho, enquanto houver olhos para ver e ouvidos para ouvir, é em nós que o passado cintila e ressoa, vivo. Muito vivo.

Noite... Que tudo confunde e iguala nas suas sombras; que tanto consolou as injúrias sofridas sob a claridade violenta que tudo distinguia, separava, ordenava. Que tanto assustou os senhores temerosos da vingança da mão negra justificadora, virtuosa. Os senhores temeram a noite e temeram seus baticuns e seus luzeiros exclusivos dos seus sabedores. E os senhores nos quiseram arrancar a noite, pois os sons estacados de sua voz se fizeram insuportáveis aos ouvidos preparados para assimilar e perpetuar a ordem. Os ouvidos que puderam não ouvir o choro e o ranger de dentes não puderam com o batuques das noites quentes prenunciadoras da Grande Noite Negra de todos os atabaques e todas as estrelas.

Por tudo nos quiseram tirar a Noite; trancaram-nos nos cubículos, arrancaram-nos os couros e madeiras, quiseram impedir que os Nossos nos viessem socorrer. Porque os batuques são os mesmos, como as estrelas, e cintilam e ressoam enquanto tivermos olhos e ouvidos. E o passado que vive em nós faria viver os Nossos, com o Raio e a Espada, com o Vento e a Peste a varrer a injustiça da terra dos homens. Entre nós Eles viveriam e nos arrebatariam da claridade que nos tentou massacrar.

Proibidos, trancados, arrancados, vivemos. E vivemos porque viveu em nós, a cada dia, debaixo da claridade mais usurpadora, a nossa Pequena Noite Íntima. Dentro de cada peito negro ela viveu, e ela era toda ela, em cada um, a Grande Noite. Porque na Pequena Noite cada tambor continuou sempre a bater e cada estrela sempre a brilhar, a despeito de toda humilhação, toda violência, toda injustiça, toda... Claridade.

O Velho ensinou. Mesmo que não tenhamos dado ouvidos, agora podemos saber o quanto das noites todas, das Pequenas e da Grande, continuam a nos querer roubar. Os mesmos de sempre. Mesmo que nos tenham feito professar que as luzes que vemos são estrelas mortas e os batuques choram os que não voltarão, hoje podemos saber que é a mesma Noite que nos continuam a querer roubar. Que a sua voz ainda lhes é insuportável e que não querem que vivam os Nossos. Mas nós continuaremos resistindo, continuaremos gritando nossas Pequenas Noites por entre as claridades das horas todas. Até que a Grande Noite venha.

Os tambores já acordaram as estrelas todas, e o céu é agora uma plenitude na qual meus olhos apredidos podem se deixar. Todos os que tombaram estão lá. Estão vivos e brilham e sua voz se faz ouvir na Noite.

[para Nei Lopes]

terça-feira, 12 de setembro de 2006

Vil

Fico às vezes embasbacado ao ver que todo o pretenso avanço institucional brasileiro ainda não foi capaz de banir da vida pública certas posturas e personagens que não têm o menor pudor de encarnar publicamente os mais abjetos conceitos e sentimentos contra os quais gastamos boa parte de nossas vidas combatendo.

Uma destas grotescas figuras, albergado seguidamente por cada uma das emissoras de televisão aberta do país e agora aspirante a um cargo eletivo, é useira e vezeira em declarações desastrosas e ofensivas à dignidade da população brasileira que é, em instância final, a titular do serviço público de telecomunicações que o emprega. Trata-se do senhor que atende pelo nome Clodovil Hernandes, costureiro afamado e dublê de apresentador de televisão, atividade na qual destaca-se por colecionar uma sucessão que parece interminável de ratas, maledissências e pseudo-polêmicas de variadas ordens.

Anteontem, figurando em matéria publicada pela Folha de S. Paulo, justamente sobre os supostos candidatos "extravagantes e divertidos", no dizer da manchete, o indigitado senhor declara, ao ser perguntado sobre “qual a vantagem de ser político”: “Nenhuma. Ainda mais porque eu nasci aqui e não na Alemanha, onde tudo é melhor, a começar pela raça. Nós viemos de índios bobos, antropófagos, você não pode pretender que as coisas sejam iguais.” (o destaque, que chega a ser desnecessário, é meu)

Há pouco mais de dois anos, o mesmo senhor Clodovil, à época cumprindo a função de apresentador do programa televisivo “A Casa é Sua”, veiculado pela emissora Rede TV, no programa do dia 17 de março de 2004, referindo-se ao suposto fato de o conhecido e não menos desastrado cantor Agnaldo Timóteo ter sido impedido por fiscais da Prefeitura Municipal de São Paulo de vender seus discos como ambulante nas ruas do centro de São Paulo, proferiu o seguinte comentário, textualmente: “[Agnaldo Timóteo] tem que vender discos na rua (...) Ele vai fazer o quê? Ele vai fazer o que todo crioulo faz no Brasil? Vai virar ladrão, bandido ou o quê?” (grifos nossos) (fonte: FolhaOnline, 18/03/2004).

Este espaço e seus leitores não reclamam a escansão dos conceitos compreendidos na infamatória assertiva, que será levada a efeito nas instâncias adequadas, como já na época. Só peço, para o mal menor das instituições democráticas, entre as quais, o Congresso Nacional, do qual aspira fazer parte o “extravagante” senhor, que divulguem.

sexta-feira, 1 de setembro de 2006




Cortejo

Roque Ferreira e Paulo César Pinheiro


No paxorô de Oxalufã
Vou me amparar, Obá
Obatalá!

Me vesti de branco
Me enfeitei de fitas
Com pano-da-Costa
Fiz meu abadá
Pus no meu turbante
Uma pedro roxa
Pendurei a guia
Com meu patuá
Botei água-de-cheiro
E antes de sair pra rua
Fui pedir a benção
Ao meu Orixá

Vim de Nazaré das Farinhas
Só pra desfilar
No afoxé dos Filhos de Gandhi
Tocando o seu ijexá
Vou seguir o cortejo
Pela beira do mar
Até o pé da igreja
De pai Oxalá

No paxorô de Oxalufã
Vou me amparar, Obá
Obatalá!