terça-feira, 19 de outubro de 2004

Sabino



A preguiça é minha marca de descaráter mais evidente. A vontade somente consegue mover-me rumo ao que me inclino por desejo após duríssima batalha com uma ela, atávica e renitente, que me define como um legítimo homo morgans. A preguiça reduz, por exemplo, a minha cultura cinematográfica a 10% de sua capacidade ociosa e a minha freqüência a exposições a níveis abaixo do humanamente tolerável, segundo dados da Organização Mundial de Saúde. Dos teatros de São Paulo, paulatinamente faz esquecer os caminhos. Balé, há décadas. Mesmo na música, que se salva como gênero de primeira necessidade, já pôs os concertos pra escanteio e contigenciou os shows aos níveis de suporte de vida.

Otto Lara Resende dizia que só não era uma besta completa graças à insônia. Meu xará Fernando Toledo agradece aos céus por gostar de ler nos butiquins... Eu tenho bem mais sono do que gostaria e nos bares normalmente me dedico a tarefas menos nobres. Se escapei da mediocridade completa, devo a meu outro xará, o Sabino.

Suas crônicas me despertaram pra valer o gosto pela leitura, juntamente com as de Drummond, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga – que posteriormente viria a ser uma das minhas maiores influências –, reunidas na coleção sugestivamente intitulada “Para Gostar de Ler”. Isso com uns dez ou onze anos. Tornei-me um devorador desses quatro autores, em verso e prosa, em livro e jornal, em crônica e romance. Do Sabino, todos os livros publicados até o fatídico Zélia, capítulo a se pular. Apaixonei-me definiticamente pela crônica, gênero algo marginalizado pelas academias, que sempre me deu a impressão de no Brasil ganhar um status literário definitivo, indiscutível e único. Talvez pela força dos nossos autores, obrigados ao ofício jornalístico diuturno num país que não reconhece e não paga seus grandes artistas. Ou talvez pela peculiaridade do espírito brasileiro, mais que qualquer outro inclinado a essa espécie de baixa-estética que brota da ironia persistente da sobrevivência. Onde mais poderíamos montar um escrete de cronistas que vai de Machado a Cony, passando por Manuel Bandeira? De Lima Barreto a Aldir, passando por Vinícius? De João do Rio a Veríssimo, passando por Antônio Maria?

A existência da opção pela literatura mais ligeira, aliada à preguiça inderrotável e à influência do Braga, fizeram de mim, à sua semelhança, um “mau leitor de romances”. Sabino escapou. O Encontro Marcado li duas vezes inteiras, uma mais ou menos aos dezessete anos, outra lá pelos vinte e sete ou vinte e oito, quando o choque inicial foi tremendamente reforçado pela década entremeada. Espero pra ler aos trinta e sete, como uma espécie de Pequeno Príncipe melancólico e tupiniquim – se me permitem a redundância - de várias gerações. O Grande Mentecapto foi o romance em que mais vezes e mais intensamente ri e chorei, pantomima caricata desse heterônimo da brasilidade que se construiu nas Gerais. E houve ainda oMenino no Espelho.

Mas a sua herança mais marcante veio-me através dos impagáveisGente e Gente II. Por ali cheguei na poesia, em Bandeira, Neruda, Murilo Mendes e Mário de Andrade. Por ali conheci Jayme Ovalle e Vinícius, Helio Pellegrino e Pedro Nava, Sergio Porto e Augusto Frederico Scmidt. E ali, mais do que tudo, me apaixonei por aquela atmosfera artística e intelectual que durante mais de três décadas reuniu no Rio de Janeiro um núcleo tão poderoso de literatos, músicos, artistas plásticos e pensadores, todos amigos, freqüentando as mesmas festas, as mesmas rodas e os mesmos bares, no Vermelinho ou na casa de Aníbal Machado. Coisa que imaginei para sempre perdida, mas que se preserva numa geração que eu tenho podido acompanhar –dádiva suprema! -, de Moacyr Luz, de Paulinho Pinheiro, Jaguar, Luiz Carlos da Vila, Aldir, Fausto Wolf, Sérgio Cabral, Hermínio Bello. E que há de se levar adiante pelos Toledos e os Goldenbergs.

Sabino também, com Rubem e com vovô, ajudou a montar o pioneiro quebra-cabeça de uma geografia carioca imaginária, idílica, com luares sobre as ondas, com faltas d’água e lotações apertadas, marias-fumaças na Central e tardes douradas de outono. Há algumas semanas, passeava eu por uma noite quente de Ipanema, pela General Osório que sempre me remeteu a ti, Fernando, por aquelas ruas “que vão de Copacabana a Ipanema”, Rubem, e passei pelo prédio do velho xará, apontado por Luise. Comentei que ele devia estar velhinho. Agora, desincumbiu-se do seu ônus de encerrar de vez essa festa brasileira, bater a porta e apagar a luz. Acabaram os mineiros, acabaram os modernos. Acabou o “Para Gostar de Ler”. Acabou o Rio de Janeiro que eu montei só no meu coração.

Cumpre-se, finalmente, naquela desolada colina de Botafogo, o epitáfio talhado em vida: “aqui jaz Fernando Sabino: nasceu homem, morreu menino”. 

Mudar



Nasci na Bela Vista, coração de São Paulo. Meus pais moravam nas Perdizes, Rua Bartira, primeiro endereço para onde me transferi depois de baixar neste terreiro doido. Embora tenha morado ali apenas até os dois anos, guardo uma imagem difusa do apartamento, que a princípio sequer se poderia tratar de memória, mas que minha mãe atesta bater muito com o lugar. De concreta, mesmo, a lembrança doce de subir a escada de cacos de cerâmica vermelha, mão dada com a vovó, contando os degraus em alemão: einz, zwei, drei... Pelos dados disponíveis, acho que fui feliz. E mudei.

Para a casa espaçosa do Sumaré, na Praça Joanópolis, 96. Neste importante ponto do universo, eu pude descobrir que era gente. E que ser gente era correr atrás de passarinho, desobedecer a mãe, ralar o joelho na mureta, ter medo de escuro e de ladrão e do Borges (o vigia-andarilho-mendigo que usava uma capa até a canela, chapéu de couro e óculos escuros e estava sempre de porre), ganhar pintinho colorido, chorar quando o pintinho virasse frango, ter irmã, judiar dela, ter ciúme, se arrepender, ir pra escola, fazer amigo, gostar de menina, soltar balão, andar de triciclo, empinar pipa, assistir a Xênia nos dias de chuva, esperar o vovô chegar do serviço com o saquinho de bala de goma (ou cigarrinho de chocolate Pan - que agora proibiram... - com fósforo de marzipã), ficar desidratado (por causa das gotas de pinho Alabarda, que a Giovana – que era linda e eu me apaixonei por ela – anunciava na televisão), ir pra o hospital, trabalhar com o pai, ser palmeirense. Definitivamente, fui feliz. E mudei.

Em janeiro de 1978, de volta às Perdizes, no 1003 da Rua Monte Alegre. A vizinha PUC havia sido invadida em setembro do ano anterior. As marcas ainda se viam nas paredes externas chamuscadas das bombas, nas histórias dos vizinhos, no muro do estacionamento ao lado do nosso prédio, onde a estudantada era tangida pela reiúna. PUC que foi o meu quintal, onde aprendi a jogar bola com os moleques da rua, onde matava aula do colégio, do primeiro beijo e do primeiro porre. Que foi capela e que foi alcova. Que depois virou casa, com a casa virando sucursal do Centro Acadêmico. Foram dezenove anos irresumíveis. Felizes. Casei e mudei.

De Perdizes, que ficou chata, tumultuada e burguesa demais, para a Pompéia, da Rua Barão do Bananal, 800. A velha Pompeía das ruínas da infância, na casa da minha outra avó, mas que já começava também a ficar chata, tumultuada e burguesa como está hoje. A Pompéia foi dos domingos em casa, com os amigos, comida, samba e cerveja demais. Do presente maior que a vida me deu, chegando em casa embrulhadinha numa mantilha branca de tricô. Das comilanças a dois e das noites em claro, na rua ou cuidando de cólica de neném. Um casamento é um casamento, ora sabeis. Onde, em maior ou menor medida, se é feliz naquela bela fase de quase todos os casamentos. Eu fui demais. E mudei.

Para o meu desterro da Armando Brussolo, na Vila Romana, que acabou virando pátria. Quase não deu tempo de ser feliz nem infeliz, medo maior. Mas a gente puxa o tamborim pra nossa baqueta e povoa a sala de amigos, o quintal de sambas, a cozinha de comida do pai, o banheiro de livros, o quarto de cheiros. Pra tudo se acabar em caixas, sábado agora.

O duro não é encaixotar as centenas de livros e cd’s. É a nudez da casa – que no fundo é a sua própria - escancarada, gritando, indiscreta sob as botas impessoais dos carregadores. Juntar os cacos das felicidades e tristezas para arquivar... O que ainda é nada comparado ao depois, àquele total estranhamento que sucede o ciúme. Àquele exílio de sua própria história.