sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Arminto




No começo, me pelava de medo; e talvez seja das minhas memórias mais remotas, pois que ainda mal me livrara dos cueiros… E essa paúra tinha – vejam vocês! - um único e mais que suficiente motivo: o bigode. Naquele tempo, ainda era o Tio Bipe - apelido cuja origem nunca cheguei a entender – o que facilitava pra gente, porque o nome mesmo nunca soube designasse algum outro ser humano sobre a face da Tera: Arminto. Maceno da Silva, sim senhor.

Desses primeiros convívios ficaram além das lembranças do medo e do apelido, o Simca Chambord dourado que não vi ninguém mais ter e as idas para Santos pelo Caminho do Mar. A vó aproveitava pra espetá-lo, explicando que o desprezo pelo conforto da Via Anchieta era pra não pagar o pedágio; mas hoje eu sei bem sabido que ele não dispensaria por nada aquela visão do mar do alto da Serra… E do resto da vida ficaram o seu charme irresitível, o bom humor invariável, a risada sempre farta. Uma piada sempre na ponta da língua, via de regra obscena, que levei tempo pra começar a entender. Imbatível nas festas da família, bom bebedor, lábia que não conheci igual. Na mesma medida que desapegado, como bom malandro, dos limites moralistas da propriedade privada, estava sempre disposto a servir e amparar a quem estivesse em condição difícil, fosse parente, vizinho ou só estivesse passando na rua, qualquer hora do dia ou da noite. Noite na qual imperou sem rivais nesta Cidade de Piratininga, é o que se conta, com tratamentos a altura de sua condição majestática onde quer que pisasse. Quem viu ainda dá testemunho, Com meus próprios olhos, mesmo, só vi uma vez, no saudoso Pena Dourada, já no time dos veteranos, bastante alquebrado pela idade e a cegueira: e deu aula!

Sempre demonstrou gostar de mim como um filho. Virava e mexia se botava a morar em lonjuras mineiras ou sergipanas, exercendo então seu indefectível carinho com telefonemas sem nenhum propósito além de trocar uns dedos de prosa e amenizar a saudade. No finalzinho, na tentativa de preencher um tico a escuridão que nele já se fazia completa, arranjei-lhe um “walkman” e umas dúzias de fitas cassete que enchi de serestas, sambas e choros dos muitos antigamentes. A beleza dessa e daquela canção, uma particularidade na melodia ou uma história que lembrava viraram temas prediletos dessas nossas tertúlias à distância, que por isso mesmo acabaram ficando bem mais frequentes. Nessas também, quando minha mulher atendia o telefone, aproveitava pra sacudir a poeira e botar em prática a velha prosa de mel, num tanto que ela até hoje se derrama de amores por ele. Que partiu sem que nunca chegassem a se conhecer pessoalmente - num dia em que chorei como filho.

Hoje, completados 100 anos de seu aparecimento neste planeta (se não erro nas contas), ergo no balcão imaginário, como diria o mano Edu, um copo cheio de lembranças, saudades, delicadezas e canções, rescendendo à cerveja do bigode e a linguiça na brasa! Chama Tio Arminto!

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Aldir 70


Vinha eu tentando encontrar as palavras para registrar meu pensamento intenso de carinho e desejo poderoso de um porvir sempre mais e mais propício para esta figura maravilhosa que o inesquecível Ceceu Rico logrou registrar, há exatos setenta anos, com o nome civil de Aldir Blanc Mendes. Que a música brasileira, os jornais e livros resumiram para Aldir Blanc. E que a vida, num presente pouco esperado e menos ainda merecido, pôde em fugazes mas intensos momentos fazer-me simplesmente Aldir. Vai ficando mais difícil quando você vai percorrendo, emocionado muito, orgulhoso um tico, linhas mais reconhecidas, mais felizes e sobretudo mais autorizadas. Como não chover no molhado, se esse portento de inteligência, talento, coragem e honradez o Brasil esteja careca de conhecer desde os primórdios dos anos 70, quando eu ainda tomava mamadeira?

De Aldir Blanc, então, de insabido, só poderia acrescentar que foi para eu-homem o que o monumental Rubem Braga foi para eu-rapaz; com a diferença de que ao velho Sabiá não lhe pude dizer às faces. Por entre as linhas do Lobo de focinho solitário do Cachoeiro, aprendi a fazer da vida uma coleção dos pequenos sentimentos. E que a beleza está nas coisas, mas depende de nós. Já com o Urso Branco da Tijuca aprendi a poesia ardida e (d)olorosa dos subúrbios e dos becos. A palavra justa, precisa, clamada pela melodia escandida nota a nota, no compasso, tempo... Silêncio. Aprendi a verdade pelo riso e pelo escárnio, o Rio de Janeiro rodrigueano que morreu e, insepulto, exala fedorências, assombra os crédulos, inspira piedades aos hipócritas, saudades às viúvas e indignação aos resistentes. E, acima de tudo, aprendi dignidade e coragem ilimitadas, mesmo a custa dos preços que sabemos muito altos.

 Mesmo com toda a dívida, hoje consegue ser ainda maior no meu peito o Aldir que o Blanc. O que é o pai da Mariana, mas que chora todos os dias pelas gêmeas. Aquele por quem jurei, suicidamente, o gigantesco segurança do Alcazar que o destratara. O que fez questão de pagar o dobro do que o vendedor de rua lhe cobrava, por achar que era o preço mais justo. O que distribuía pastéis sacados do bolso no meio do bloco de carnaval, vestido de jacaré, ou o que virou a mesa (literalmente) de indignação, por uma agressão injusta e injustificada. Aquele com quem pude beber só umas poucas vezes, mas o suficiente pra poder chorar amparado por suas mãos imensas. O suficiente pra sua generosidade não menos imensa e tão mal contida me chamar, um belo dia, assim meio de soslaio, "meu irmãozinho de São Paulo".

Ele mesmo costuma dizer que quem letra as canções todas  não é o Aldir Blanc, mas o Menino de Vila Isabel. Neste dia em que nosso judiado Brasil consegue reencontrar sua altivez vilipendiada e, por que não?, alguma esperança através da figura de um dos maiores de seus filhos, injeto em minhas veias o soro poluído dos versos do Poeta e ergo os braços para arrebatar o Menino do alto da goiabeira branca de onde me ensinou um jeito tão único de olhar o mundo. Para, em nanica retribuição, agasalhá-lo por instantes junto ao peito, beijá-lo e dizer: obrigado! Muito, muito obrigado...

sexta-feira, 15 de julho de 2016

"Último pensamento de cada noite, primeiro de cada manhã. Mas no prado da esperança persiste a pequena rosa espúria da náusea."

 (Marques Rebelo, O Trapicheiro)

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Triste pierrô, se transformou em saudade


 Era uma tarde de 1986 ou 87. De domingo, muito provavelmente. Já tinha passado ali outras vezes e me chamava atenção o violão na parede. Nesse dia não estava na parede: um barbudo de poucos sorrisos o tocava numa mesa com umas cinco ou seis pessoas entorno. A birita corria solta. Retive a vaga impressão de que o ambiente estava meio escuro, como se o bar não estivesse propriamente aberto. Mas estava – a porta, pelo menos - e entrei. E a minha vida não foi mais a mesma. Era, então, um garoto estranho, precoce em tantas coisas, atrasado em outras, de gosto singular e uma obstinação por três ou quatro assuntos que me interessavam, nada mais. Um deles, a música brasileira. Na qual mergulhei, fucei, cavei, escarafunchei, me perdi e me achei. Me perdi na solidão de não ter com quem compartilhar a sede de conhecer, as descobertas – com a exceção salvadora de meu avô - as tardes perdidas em saletas velhíssimas do velho Centro paulistano, em companhia de outros obstinados, em média 40 ou 50 anos mais velhos. E me achei naquela tarde de domingo.

O bar era o Bom Motivo, esquina de Deputado Lacerda Franco com Inácio Pereira da Rocha, naquela parte de Pinheiros que acabou depois simbolicamente engolida por uma Vila Madalena temática que então nem sonhava em nascer: era mesmo só uma vila de pés sujos, casario modesto, campos de várzea e conjuntos habitacionais. Mesmo ali embaixo, onde já pontificavam bastiões como o Bar da Virada e o Vou Vivendo, ninguém podia imaginar a explosão de vinte anos depois. Ali o menino se “desestranhou”, ganhou casa e uma família; ficou sendo o caçulinha (minto: Roberta Valente é 13 dias mais nova!) de um monte de irmãos também esquisitos, também apaixonados, também desalojados de antemão de um mundinho que agonizava. Como agonizava também – não sabíamos - a boemia cevada a música, álcool e tertúlia, fraternidades cosidas pelo fio da solidão.

O barbudo tocador era o comandante-em-chefe do furdunço, Roberto Lapiccirella. Temperamental, curioso, inteligentíssimo, mal-humorado, empreendedor, charmoso, debochado, imensamente carismático, era o elo fundamental, a liga da massa, o aglutinador por excelência de tudo e todos que gravitavam em volta da saudosa esquina. Não sei se por ser o mais esquisito, o mais maluco, o mais bebum, o mais apaixonado, ou se provavelmente por tudo isso junto, com ele me identifiquei tremendamente, de sorte que foi virando uma espécie de guru, de irmão mais velho de verdade. Gostava de mim. (Como brilharam seus olhos no dia em que descobriu que eu tinha a gravação do “Pé de Anjo” do Sinhô, primeira de Francisco Alves, que ela andava atrás havia tempos!...) Muito pelo papo da música, que rolava sempre solto, eu sempre muito mais aprendendo, mas bastante também pela minha então proverbial e precoce resistência boemia – porque acompanhá-lo não era pra qualquer um!

E nesse final dos 80 o bar foi virando um ponto nevrálgico dos gostadores da música brasileira. E foi tanto o sucesso, tanto o movimento, tanta a gente, que o Roberto desgostou: ia escasseando o espaço para o encontro dos amigos, para o violão na mesa, a informalidade e o descompromisso. Daí nasceu, a cinquenta metros dali, a Choperia - ou “o dois”, como alguns chamávamos.

E a farra ficou completa. Virou casa, de verdade, a ponto de, num tempo pré-celular, ter anotado o telefone do bar no verso do meu cartão de visita. Dizia-se que a gente não pagava a conta, pagava o aluguel: largava ali, em média, setenta por cento do meu salário – os outro trinta deixava no Pé pra Fora. Mas como valia...! O Clube da Seresta, que conhecia de outros carnavais, ancorou ali nas quartas-feiras; finda a função, formava-se a roda, violão passando de mão em mão – e foi aí que resolvi aprender a tocar. Até altas, altíssimas (pra não dizer que diversas vezes, sol raiado, expulsos todos do bar, inclusive o próprio Roberto, íamos pra casa dele e o caldo entornava geral, coisa de se chegar em casa 10, 11 horas da matina...). Ali me aproximei dos mestres que desde muito via tocar de longe, sem coragem de chegar junto: Carlos Poyares, João Macacão, Otávio, Zequinha do Pandeiro, Joãozinho Torto, João Malhado, Tigrão. Ali bebi e convivi com ídolos em seus crepúsculos, gente do tamanho de Zé Ketti, Jorge Costa, Victor Simon, Maugeri Sobrinho, e vi raiar Ney Mesquita, Mônica Salmaso, Ibys Maceió, Carmem Queiroz. Ali conheci parceiros-irmãos como Helinho Guadalupe, Cebolinha, Valtinho do Violão, e recebi meu primeiro cachê como cantor. Ali a cabeça inquieta de Roberto ia gestando e gerando suas obras fundamentais: os shows-homenagem e os preciosos livretos; o livro das Marchinhas de Carnaval (hoje clássico) e o Bando da Rua; o Brócole Carnavalesco Bom Motivo, que saía pelas ruas do bairro, sem cordão, sem equipamento, sem carro, sem alvará nem CET, com duas dúzias de bebuns fantasiados invadindo os bares, artilharia pesada de confetes e serpentinas, cantando as velhas marchinhas, os sambas antiquíssimos, dançando com garçom, sentando em colo de cliente... Quem viu, viu.

Com Roberto aprendi que a música só precisa ser cantada pra não morrer. Aprendi o valor do artista que se acompanha, que sozinho faz o espetáculo e a festa. Aprendi que o Carnaval não se faz com aparato nem dinheiro, mas com paixão, descontração e espírito folião. Aprendi que a pesquisa por ela mesma não é nada, se o conhecimento produzido não for compartilhado, não gerar memória, não fizer reviver - e sobreviver. Aprendi muito da dureza de se conciliar paixão, descontração e descompromisso com sobrevivência. Aprendi da importância de ter quem faça acontecer. E sei que se hoje canto, se alguma coisa pude e posso ainda fazer para que o tesouro maravilhoso da música brasileira, do qual somos fiéis depositários, vá sobrevivendo pelas beiradas da indiferença-geral da República, é muitíssimo graças a ele. 

E quem sabe se porque aquilo tudo tenha sido tanto pra tanta gente, e porque girasse tanto em torno da figura ímpar do nosso bom Lapica, tenhamos sido todos tão pegos de calças curtas nesse 7 de agosto que passou. Talvez até menos pela surpresa ordinária que uma morte precoce sempre carrega. Mais, quero crer, pela consciência tão repentina quanto acachapante do tamanho que aquilo tinha e tem em nossas vidas. E pelo lugar outro que, irremediavelmente, agora passará a ocupar. De tal sorte que as despedidas costumeiras, as solenidades e rituais ordinários com que modernamente destratamos a morte não tenham sido suficientes pra extravasar o nó que não conseguíamos disfarçar. E é por isso que convoco aqui, para um gurufim imaginário, regado a muuuita música e muuuito pileque, onde quer que estejam, neste ou em outros mundos: Isabel, Tânia, Danilo, Carlão, Valderez, Alice, Olavo, Roberta, Babica, Chico Médico, Mário Mammana, Valtinho, Ney Mesquita, Silvana, Railídia, Marcão, João Paulo, Armando, Ian Clayton, Ibys Maceió, Maurício Anacleto, Josias, Carminha, Carlos Renato, Meirinha, Ademir, Giba, Mariângela, Fabinho, Carlos Poyares, Fauze, Lineu, Jair, Ildo, Tião Preto, Dutra, Marilena, Gustavo, Normian, Gastão, Marília, Cidão 7 Cordas, Otávio, Pereirinha, Percy, Marco Paulo, João Malhado, Zé Ketti, Jorge Costa, Helinho, Cebola, Simon, Maugeri e quem mais resolver chegar. Vamos beber, tocar violão, cantar o “Bom dia, café!”, a “Ressureição dos velhos carnavais” e o “Choro em prelúdio”. Vamos sair pelas ruas e invadir os bares pra mostrar o que aprendemos. E pra dizer que ainda teimaremos um pouco mais em não morrer completamente.  

segunda-feira, 30 de março de 2015

Malhação do Judas Carioca

João Antônio*


A tradição, bem portuguesa, foi adotada no Brasil colonial e é coisa bem nossa. Teve momentos mais gloriosos em que a polícia permitia usar nomes de políticos, delegados ou ministros. E, apesar do progresso, nos subúrbios cariocas, a malhação do Judas continua viva, firme, principalmente para a molecada e a rapaziada do Largo da Cancela, da Barreira do Vasco e do Jacarezinho. E já que nomes importantes não podem ser malhados, a moçada fere, desce o pau e mete fogo nos amores, futricos, fofocas e mazelas dos vizinhos e das vizinhas.

Nem chuva renitente, nem camburão de Polícia, nem abaixo-assinado impedem a malhação do Judas no Sábado da Aleluia nos lugares em que o costume é tradição viva na Zona Norte. A rapaziada trata de remexer, com espírito e humor, muita vez expresso em palavrões e licenciosidade, a vida e o amargo da vida suburbana. Por uma coincidência fotogênica, o Rio esquecido, pobre, ignorante salta para os corpos dos Judas.

Assim, mazelas de maridos traídos, prostituição levada ou flagrada dentro dos lares, desmandos do jogo do bicho, falsas virgens virtuosas e homossexuais confessos ou incubados vêm a público nos cartazes, enquanto a molecada miúda, numerosa, peitos nus debaixo de sol ou de chuva e paus na mão, aguarda o momento da malhação e do atear fogo.



SILÊNCIO NO LARGO DA CANCELA

A molecadinha e a rapaziada de São Cristóvão, no Largo da Cancela assistem constrangidas, decepcionadas, ali por volta das nove e meia de Sábado da Aleluia, à chegada encabuladora do camburão que limpa, rapa, retira seus judas já tradicionais do largo e obriga a moçada a catar outros tantos.

Mesmo tangida pela polícia que age em nome da ordem e do respeito, a garotada está disposta a continuar a tradição e arrasta seus judas e testamentos (inscrições) para a Rua da Liberdade, ruela próxima ao Largo da Cancela. São seis-sete judas e acabam executados a pau, palavrada e fogo na marca das dez da manhã, que ninguém espera o meio-dia para o pau comer.

Mãos gordas, zelosas e temerosas impedem na ruela chamada da Liberdade que os filhos menores – pelo menos os menorzinhos de seis anos – participem do movimento que ocupa todos e envolve donos de botequim, homens que escrevem jogo do bicho, meninos, mocinhas, rapazes e velhos curiosos, bisbilhoteiros, sorridentes ou cooperantes.

O pequeno mundo da rua da Liberdade, seu ambiente de futricadas, fofocas, pinimbas e amores vai sendo passado a limpo, sem falsas peias e maiores delongas pela crônica dos testamentos penduradas em cartazes nos judas. A vida enxerida de Gracinha, perigosa de Carioca e matreira do escrevente de bicho Arerê vão sendo expostas em português do morro, palavras licenciosas e objetivas. Os tipos mais populares são ridicularizados, os mais calados também. Poucos vão escapar ao testamento. Desmandos do bicheiro, da esposa infiel, do gabola, do mulherengo, do falso tímido e do homossexual dissimulado pelo bom comportamento são pintados cruamente.

A Zona Norte acontece em preto-e-branco. Rapazes e mocinhas, íntimos da vida suburbana, deliciam-se com os ditos infamantes. Mães, pais e esposas atingidas estão fulos e garotos, ás vintenas, mesmo sem entender, fazem um clima de polvorosa na rua comprida e sem largura, ruela, que é a da Liberdade, em São Cristóvão.

Judas pendurados e enforcados botam as mágoas do povo pra fora e ouvem os xingos do motorista de caminhão que não pode atravessar a rua com tanto movimento.

Gentes mais antigas comentam que, de ano pra ano, o judas está mais fraco, a polícia dá em cima, procurando evitar que eles ofendam as autoridades. Antigamente era melhor, segundo uma velha senhora que segura o seu neto para que ele não caia na gandaia na Rua da Liberdade:

‒ A rapaziada mexia com todo mundo e com gente grossa. Uma vez, me lembro, fizeram um judas para o Venâncio Veloso, das Casas da Banha e outra para o delegado Padilha. Hoje ninguém mais mexe com eles, só fica bulindo é com o pessoal daqui mesmo, principalmente com a vida das mocinhas e das mulheres.

E, enquanto o Largo da Cancela não ferve, vigiado pelas idas e vindas do camburão, a Rua da Liberdade explode com palavrões e rumor. E pára o movimento doméstico de manhã de sábado. Mães vêm para as janelas, a rapaziada de bermuda sai à rua e até o ponto do bicho tem de parar.

Alguns testamentos são praticamente escritos com palavrões claros e francos. Outros, mais leves, como o do Arerê que se vê obrigado, em pessoa, a assistir a malhação do seu próprio Judas:

TESTAMENTO DO ARERÊ

1 ‒ O meu pique (corrida) para o Oto.
2 ‒ A minha calça para o João.
3 ‒Minha blusa para o Luís Orlando.
4 ‒ Minha cabeça para o Miguel.
5 ‒ Minha casa no morro para o Carioca.
6 ‒ Meu sapato para o Luisinho.

Já o Testamento de Glorinha, pregado a uma parede, tem uns quinze itens e dedica partes íntimas do corpo a este e aquele e se refere a certas qualidades de forma aspada, como “donzela” e “virgindade”, 'porta-seios” e por aí assim. O Testamento de Carioca revela dois homossexuais incubados e sem coragem para a confissão.



MASSACRE NA BARREIRA DO VASCO

Pendurado a um poste defronte a uma companhia de armazéns gerais, um judas-mulher. Fantasia de mulher, bolsinha de couro, e o resto do componente de colares, embelecos, penduricalhos. Expõe palavrões infamantes e xingos, onde as palavras “pegadeira” e “piranha” são as mais levez. E tome humor carioca.

Mulheres faveladas se aproximam, enfiam-se no meio da molecada magra e maltrapilha, fuxicam a vida íntima das vizinhas, conhecidas, desconhecidas e rivais. Sem quê, nem pra quê, os palavrões voam. Um ressentimento:

‒ Eu queria pegar quem escreveu isso.

Mas são dez e meia e a malhação começa. Depois das pauladas, a cabos de vassoura, rápido começa o atear fogo. O movimento da Rua Ricardo Machado é interrompido, debaixo de pau. A bolsa de couro da judas-mulher voa longe e, alguém disfarçadamente, a carrega, a manda, a enruste, no meio da confusão. À porta do botequim, charlando e rindo, homens bebericam cachaça e cerveja.



Fogo, pau e água

Muita coisa leva o povo da Zona Norte a viver já no passado. Até o judas de Sábado da Aleluia, que já foi melhor, mais intenso, a rapaziada terrível mexendo com todo mundo, criando confusão, prisões, brigas e até mortes. Estava disposta a tudo nas inscrições. Na palavra dos antigos:

‒ Só não chamavam de santo porque o cara não era mesmo.

De resto, a vida pública, principalmente a polícia, os atacadistas e a política eram achincalhadas. O esculacho colocou vários governadores e delegados, enquanto judas, sentados em latrinas sórdidas ou de penico na mão.

Mas é a garotada do Jacarezinho, unida e conluiada, a que mantém mais aceso o judas, mesmo em tempos de bom comportamento. Eles aprecem muito enfeitados e grotescos, além de muitos nas ruas General Belfort, Dr. Manoel Cotrim e, especialmente, num quegê, o da Rua Teixeira Leite.

Sete letreiros viperinos, vexatórios, franxos e chulos enfeitam as paredes de uma colchoaria. Mais de trinta moleques enfiam-se assanhados na multidão de curiosos, atiçadores ou basbaques. Os homens, na maioria pouco atingidos, riem do ataque ferino e achatante contra as mulheres nos testamentos ‒ faladeiras, futriqueiras, “cunhadas”, “madrinhas”, “titias”, “comadres”, infiéis, virgens falsas, viciadas em jogo do bicho e, principalmente, as “candinhas”. É o mundo pobre e de baixo nível dos subúrbios cariocas gritando em preto-e-branco.

Ninguém escapa. Sentado numa latrina em plena calçada, o judas da Rua Teixeira Leite, tem às suas costas os sete letreiros que descarnam, sem restrições e economias, os traços mais vivos das intimidades da região. Praticamente tudo é mexido e remexido:

Alô, dona Candinha, que bicho deu? Os Imortais do Bairro; Carlinhos do Mar; Wilson dos Vidros; Os Convencidos; a Colchoaria do Diabo; As Perfeições Furadas; Restaurante Chic: a pedida é alta e a comida é pouca”.

Sentado na latrina, o judas tem uma inscrição no peito, diz mandado por quem e a que veio: “Homenagem aos comerciantes de Jacaré”.

A cena é ridícula, grotesca, mas tensa. A tal dona Candinha das inscrições do judas vem passando, vestido comprido e fora de moda, vermelho, mexendo-se barriguda, atarracada, baixota de óculos e cabelos tingidos de acaju. Não tem como fugir, vê-se obrigada a ler o cartaz. Fula nas pernas cambaias e em sapatos de saltos comidos, atrás dos óculos, ele procura, atentamente, o autor da infâmia. Um gaiato, querendo acalmá-la, recomenda:

‒ Calma, dona candinha. Aqui em Jacaré tem muitas Candinhas. Pode ser que não seja a senhora. Não leve a rapaziada a mal.

De mãos na cintura, a portuguesa dona do botequim, abespinha-se com a molecada que dança em frente ao judas. Os rapazes gozam a situação. Letras grandes, está no testamento do judas:

Alô, pessoal! Façam suas apostas. Qual dos dois bares vai falir primeiro: Dona Maria ou seu Antônio?”

Logo depois, o testamento, alfinetando a vida da vizinhança:

1 ‒ Meu cabelo para o Jorge Gordo. Um de meus olhos para o Ricardo que é cego e só falta a bengala.
2 ‒ A camisa para o Galileu, que só tem uma.
3 – A gravata para o malandro de Jacaré, o Isaltino Kibon.
4 – A calça para o Zé Mota, o novo vagabundo do bairro.

Dona Maria, portuguesa do botequim, zangada, braços cruzados no peito, vê o judas sendo queimado e se vinga. Fala para as vizinhas lavadeiras:

– Deixa estar. Com essas fagulhas, quem tem roupa no varal está estrepada.



* in Malhação do Judas Carioca, 2ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976, pp. 113-118

segunda-feira, 2 de março de 2015

A escola e o samba


De tempos para cá, todos os anos nessa época pós-carnavalesca, de certo soçobrados pelas vicissitudes que reiteradamente projetam interrogações sobre o futuro das escolas de samba, tenho observado alguns espíritos inquietarem-se, por tabela, com indagações acerca do futuro do samba, em si mesmo, não somente como gênero musical, mas como depositário do cabedal sabidamente inestimável de valores, símbolos, visões de mundo, sabedorias, elos, costumes, posturas e sociabilidades. Não pretendo aqui reinventar a roda, nem ensinar os curas a rezarem a missa, até porque à tarefa já se dedicaram canetas bem mais abalizadas – como mestre Nei Lopes em seu indispensável “Sambeabá – o samba que não se aprende na escola” (Rio de Janeiro: Folha Seca/ Casa da Palavra, 2003); mas o fato é que se o samba (tal como mais comumente o conhecemos no meio urbano, a partir dos anos 1930) e as escolas foram gerados e gestados como gêmeos univitelinos a partir e em função de uma necessidade e uma proposta específicas, os caminhos que percorreram foram, desde muito cedo, independentes.

Em meados dos anos 20, alguns núcleos criadores onde florescia o samba, foram capazes de identificar, por um lado, a disseminação e aceitação quase espontâneas das expressões musicais albergadas sob o espectro do “samba” pelas massas da sociedade carioca, sobretudo durante o Carnaval; por outro, a possibilidade privilegiada de valer-se do relaxamento das fronteiras culturais e do aparato repressivo a ela correlato durante os dias de folia – fenômeno que repete a trajetória de um sem número de criações populares originalmente não associadas ao Carnaval (como maracatus, afoxês, cavalos-marinhos, caboclinhos, bois, entre outros) , mas que sendo expressões de estratos sociais marginalizados, normalmente derivadas de matrizes culturais indígenas ou africanas, aproveitavam-se da “baixa da guarda” para transpor os limites geográficos e sociais de seus núcleos originários (1) (fossem a zona rural, os morros, os terreiros, quilombos etc.) - para ganhar as ruas, nem que fosse por dois ou três dias. Surge assim a necessidade/proposta de adaptar uma expressão musical (mais estrito seria uma gama de expressões de traços comuns) corrente entre as camadas populares do Rio de Janeiro do princípio do século XX – o samba - à forma processional que caracterizava as principais expressões do Carnaval carioca desde o quarto final do século anterior, notadamente os ranchos e as grandes sociedades.

A estratégia cultural genialmente vislumbrada pelos “inventores” do samba “moderno” - quais sejam os sambistas geográfica e culturalmente ligado ao núcleo do Largo do Estácio, na cidade do Rio de Janeiro, e seus arredores – foi, pois, mimetizar a forma de organização das agremiações carnavalescas então mais eminentes (ranchos e sociedades) e sua correlata maneira de ganhar as ruas durante o Carnaval: o desfile, o cortejo. Um problema, entretanto, haveria de ser resolvido: diferentemente dos folguedos de origem européia, que traziam a forma processional em sua herança “genética”, o samba constituiu-se como um divertimento umbilicalmente ligado à forma de “roda”. Muito mais do que um detalhe antropológico, tratava-se de um problema musical: as células rítmicas características das formas do samba até então mais disseminadas não se prestavam à evolução em forma de desfile, seja a que modernamente está mais próxima do que conhecemos como partido alto (caracteristicamente destinada ao canto e à dança no âmbito da roda), seja a versão “amaxixada”, ensejadora de volteios e floreados próprios dos casais em pistas de dança limitadas, escuras e apertadas. A mudança do padrão rítmico do samba a partir do núcleo estaciano, sobre a qual muita tinta já se verteu, é o produto dessa necessidade de adaptação, fruto, como destacado, do anseio de se valer do Carnaval para levar o samba além das fronteiras dos morros, terreiros e dos quintais das casas da Zona Portuária. Não é de se estranhar, assim, que essa mudança seja concomitante e diretamente ligada à invenção e incorporação de dois instrumentos fundamentais para a nova conformação: o surdo – responsável pelo pulso mais “marcial”, próprio para uniformizar a cadência do desfile – e o tamborim, na tarefa de manutenção da maleabilidade da divisão rítmica nos contratempos.

O sucesso da “solução” estaciana para a adaptação do samba à necessidade do desfile em forma de cortejo é despiciendo frisar. Seus principais subprodutos foram, de um lado, a consolidação da forma moderna do samba, que a partir de então ganhou, não só as ruas, mas os grandes meios de reprodução então em voga – o rádio e o disco – e, a partir daí, pôde arvorar-se em voz privilegiada da expressão musical nacional, dentro e fora de nossas fronteiras. De outro, as “escolas de samba”, por sua vez, em pouco tempo levariam a cabo os processos de adaptação (como por exemplo, a paulatina, mas relativamente rápida, substituição dos sambas de refrão, de temas livres e com as segundas partes improvisadas, pelo samba único, “de enredo”, composto adrede sobre um tema proposto) e absorção dos elementos estéticos dos ranchos e sociedades para ascenderem, em menos de uma década, ao posto de expressão mais destacada do Carnaval carioca.

Dialeticamente, porém, postulo aqui uma dimensão de fracasso do projeto, não tão comumente salientada. Curiosamente, a Deixa Falar, escola de samba fundada pelo núcleo de sambistas do Estácio, desfilou apenas um carnaval nessa condição; em seguida transformou-se em rancho, desfilando mais um ou dois anos, até desaparecer. Os motivos dessa efemeridade não são claros. Teriam os visionários criadores capitaneados por Ismael Silva, Nilton Bastos, Mano Rubem, Mano Edgar, Alcebíades Barcelos e Armando Marçal decepcionado-se com o resultado obtido? Se sim, qual a natureza dessa decepção? Ou seus espíritos avançados puderam antever os resultados estéticos e culturais que a transposição “artificial” do samba para além de suas fronteiras teria sobre o próprio gênero e sobre seu significado no âmbito dos núcleos populacionais a partir dos quais se criara? Perguntas sem respostas. A despeito da fórmula ter-se em pouquíssimo tempo espalhado pelos redutos criadores de samba na cidade do Rio de Janeiro, creio que o propalado “sucesso” da utilização da célula rítmica do samba para um desfile em cortejo merece alguma objeção. Musicalmente, o grande compositor Angenor de Oliveira, o Cartola, um dos responsáveis pela adoção pelos carnavalescos do Morro da Mangueira e adjacências do padrão estaciano de organização e desfile, ainda em finais dos anos 20, já na década de 1950 se afastava dos desfiles das escolas de samba considerando não ser o padrão musical apresentado por essas agremiações e condizentes com as características primordiais do gênero; vale dizer: a forma musical que foi levada a cabo pelas escolas décadas afora, malgrado tenha possibilitado que desfilassem em forma de cortejo, segundo o projeto inicial, não conseguiu manter os padrões estéticos que fizeram do samba... Samba! Durezas conceituais à parte - e sem absolutamente desconsiderar, tanto a imensidão do tesouro musical forjado no seio das escolas de samba (durante as décadas de 50 e 60, inclusive e, talvez, principalmente), como a grandeza da expressão artística coletiva consubstanciada na realização de seus desfiles até os dias que vão - a antevisão do mestre Cartola erigir-se-ia em fato insofismável quatro décadas mais tarde, quando paulatinamente a batida do samba iria se afeiçoar à da marcha (cadência, por excelência, dos cortejos) até a aceleração do pulso destruir completamente a possibilidade da síncopa que distingue ritmicamente o gênero acima de qualquer outra característica. Culturalmente, a transformação do significado das escolas de samba no âmbito dos estratos populacionais que as geraram, é matéria que, além de extensamente tratada por gente de melhor gabarito, refoge aos objetivos do que aqui se quer demonstrar.

E o que se quer demonstrar, na verdade, é que, malgrado tenha sido forjado especificamente para atender às expectativas de alguns sambistas de entabularem um cortejo ao som da expressão musical que mais fielmente representava seu universo - não só esteticamente, mas como expressão de seus valores, visões de mundo, códigos de conduta, sabedorias, singularidades, pertencimentos, ancestralidades etc. - o samba urbano de padrão estaciano trilhou caminhos de afirmação desses traços culturais independentemente do sucesso-fracasso relativos do projeto representado pelas escolas de samba. Enquanto a viabilidade desse, especificamente em relação ao Carnaval e aos desfiles, se mostrou instável e passível de objeções desde muito cedo e ao longo dessas oito décadas, a cepa musical dele brotada enraizou-se, cresceu, ramificou pelos quatro cantos da Nação e encarregou-se de carrear consigo todo o cabedal cultural que constava em sua semente. Jamais deixou de se nutrir e florescer no seio do povo afro-descendente que o gerou, no seio das comunidades populares, juntamente e/ou a despeito da organização das escolas, ora a elas se misturando, ora resistindo; ora as tangenciando, ora delas se afastando. Concomitantemente, como assinalado, cruzou as fronteiras dos estratos populares, ganhou o rádio e o disco, ignorando distinções sócio-econômicas, disputando nacionalmente a hegemonia estética ombro-a-ombro com a música massificada pelo peso da indústria cultural transnacional, a despeito da brutal desigualdade de recursos. “Roupa folgada de vestir” em meio à imensa diversidade regional brasileira, arrebatou gostos, cativou corações, ganhou sotaques e cores locais, por todos os rincões do Brasil, incorporando influências que o enriqueceram e revitalizaram. Serviu de elemento catalizador para a recriação da roda (que o gerara) como espaço de reprodução da vida social, do encontro, da troca, da festa, da celebração, do trabalho. Essa, por sua vez, revisitada, reinventada, qual ventre fecundado, pôde servir de abrigo para sua herança assim viva até hoje.

Nutro grande veneração pela força cultural que gerou, concomitantemente, o samba moderno e a escola de samba, cabedal de meus ancestrais. Respeito profundamente a história gloriosa das escolas de samba, enquanto expressão sócio-cultural ligada precipuamente ao Carnaval. Reconheço a grandeza da expressão artística que até hoje encerram seus desfiles, de natureza eminentemente coletiva e em grande parte ainda de feição popular (senão na concepção/conformação, ainda, pelo menos, na realização), tendo partilhado durante muito tempo do fascínio pela grandiosidade do espetáculo produzido. Entretanto, malgrado a ligação seminal, como gêmeos separados no berço, as sendas percorridas pelas escolas, de um lado, e o samba propriamente dito, de outro, estão dissociadas praticamente desde sua origem. Ambos ganharam o mundo. Ambos, nesse caminho, transformam o país, transformaram-se com ele, ganharam, perderam, incorporaram e foram incorporados, seduziram e foram seduzidos, apanharam, subverteram. Ambos geraram sociabilidades singulares. Ousaram, mas a proporção da conta apresentada pela História foi desigual. A escola, sobremaneira mais onerada pelo fardo do projeto que a gerou, caminhou sempre e até hoje sob o peso do magno imperativo do desfile: avançar, avançar, avançar. As sociabilidades que se construíram ao seu redor, por decorrência, carregam igualmente o peso da objetividade, da eficiência, do engajamento, da hierarquia. Seu gêmeo, depositário de um jugo menos opressivo, a despeito dos descaminhos todos, menos obstrito a avançar, logrou manter à sua disposição o recurso do gingado, do volteio, do recuo, do simulacro, da cadência de engano – pelo que as sociabilidades a si correlatas são mais maleáveis, mais fluidas, reinventam-se mais facilmente. Disso se vale para resguardar o cabedal que lhe foi confiado. Respeita sua irmã, com ela conviveu, mais ou menos proximamente; mas dela nunca dependeu nem nunca dependerá. Para nada. Assim “o samba vai seguindo”, “balança, porém não cai”, com a licença do mestre Luiz Grande. Os espíritos soçobrados podem se aquietar.


1 Essa transposição de fronteiras, seja no âmbito estritamente geográfico, seja no sentido sócio-cultural, é tão natural no anseio como contraditória no resultado. A possibilidade de exibir formas expressivas de originalidade e beleza indiscutíveis sempre sinalizou para seus estratos produtores, socialmente marginalizados, horizontes possíveis, senão de integração, ao menos de reconhecimento e respeitabilidade. A contradição emergirá do deslocamento de cenário – e, consequentemente, de todo o aparato referencial simbólico, de códigos de conduta, valorações, parâmetros estéticos etc. - que exporá aquelas formas forjadas em contextos bastante específicos a regramentos, expectativas e julgamentos pautados por valores extrínsecos. E o resultado poderá variar num arco que vai da não aceitação pura e simples à absorção total e subsunção à lógica geral da ordem do poder e da economia.


terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Chama Tigrão!


O Brasil perdeu hoje um de seus maiores pandeiros de choro.

 Adauto Cardoso de Oliveira pouca gente saberia dizer quem era. Mas “Tigrão” era dos nomes mais respeitados em todas as curriolas onde se tenha celebrado a preciosa tradição do choro da cidade de São Paulo nas últimas quatro décadas. Músico generoso, ritmista impecável, sabedor das mandingas e mirongas todas dessa arte que pouco a pouco tanto se distancia de suas origens populares – para não dizer marginais, sem Tigrão o choro fica um pouco menos brasileiro, um pouco menos popular.

Eu, que sou chorão tão somente pelos caudais que tantas vezes, como hoje, não contenho nos  olhos, e tive a honra de ser por ele acompanhado incontáveis vezes, desde os saudosos tempos do Clube da Seresta, lanço daqui esta evocação-homenagem-manifesto: Chama Tigrão!!!


sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Cura-te a ti mesmo!


O Ministério Público e a transformação do futebol em estado de exceção à normalidade democrática


A gente fala de sentimentos, eles não entendem. A gente fala de cultura, eles arvoram seus preconceitos, seu desprezo por tudo que não reproduza seu padrão de pensamento de classe dominante. A gente fala de política, esbarra em seus autoritarismos, verborragias, empáfias e lugares comuns contruídos em anos de imbecilização das massas. Vamos, pois, falar de Direito.

A regra político-jutídica que nos dias atuais grassa na imensa maioria das nações e sociedades ditas democráticas é a que se convencionou chamar “Estado de Direito”. Basicamente se define pela subsunção absoluta do exercício do poder estatal a um conjunto de regras anteriormente definidas e conhecidas, submetidas todas a uma norma fundante e fundamental. Entre nós, essa norma superior que serve de suporte a todas as demais é a Constituição. E em nossa Lei Maior a máxima consubstanciação desse sistema que visa tanto o controle político sobre a ação do estado, como a preservação das liberdades individuais, tem lugar no chamado “princípio da legalidade”, segundo o qual apenas e tão somente as leis aprovadas pelo Congresso Nacional e demais casas legislativas (Assembléias Legislativas e Câmaras de Vereadores) é que definem o que os cidadãos e o Estado podem ou não podem fazer. Entretanto, o alcance dessa máxima em relação aos cidadãos em geral tem um sentido, por assim dizer, oposto ao que tem em relação à atuação do Estado por meio de seus agentes. Dito de forma prática, enquanto o particular pode fazer qualquer coisa que a lei não proíba, os agentes estatais apenas e tão somente podem fazer aquilo que é previsto estrita e expressamente pela lei.

No estudo da teoria do estado moderno é também conhecida a figura do assim chamado “estado de exceção”, que alguns tendem, didaticamente, a contrapor à noção de “Estado de Direito”, por caracterizar uma situação em que a atuação estatal não se pauta estritamente pela lei, mas está balizada por parâmetros outros. Essa contraposição, entretanto, não é precisa. Há que se distinguir, basicamente, por um lado, as hipóteses em que o próprio sistema normativo admite uma flexibilização das formalidades legais para o atendimento de situações emergenciais, tais como as decorrentes de grandes catástrofes climáticas, de invasão do território por forças estrangeiras, ou outras ameaças à própria existência do estado, suas instituições e poderes constituídos. Nesse caso, é o ordenamento normativo que prevê a supressão momentânea de determinadas formalidades para que o parâmetro da atuação estatal passe a ser a resposta pronta e eficiente às demandas que envolvam atuações rápidas e distintas do padrão. Essas hipóteses devem ser precisamente descritas e tem tempo de duração absolutamente restrito à restauração da normalidade; a adequação aos objetivos que as ensejam, bem como os eventuais excessos cometidos, submetem-se ao controle das instituições democráticas como os parlamentos, o Poder Judiciário etc. Por outro lado, situação completamente diversa se dá quando a normalidade do funcionamento do Estado de Direito fica comprometida fora das hipóteses previstas no ordenamento normativo, como no caso extremo do golpe de estado, ou quando há comprometimento grave e sistemático do funcionamento institucional, com o surgimento de poderes “paralelos”. Nesses casos, como parece claro, os instrumentos de ação do Estado de Direito mostram-se incapazes de promover a restauração da normalidade jurídico-democrática, e os parâmetros para o exercício do poder estatal migram para fora do sistema, seja para a vontade pessoal do ditador, seja para o exercício da violência por ela mesma, ou para interesses de grupos para-estatais (organizações criminosas, movimentos políticos extremistas etc.) e por aí vai.

Por ocasião da realização da Copa do Mundo no Brasil, muitas vozes se ergueram para alertar sobre o perigo representado por concessões relativamente à prevalência de determinadas regras jurídicas vigentes em relação aos interesses organizacionais envolvidos, com riscos de se erigirem em verdadeiras situações de exceção. Desde regras especiais para a aquisição de bens e serviços pelo setor público (que normalmente obedece a rígidos parâmetros estabelecidos pela Lei de Licitações) até as denúncias de desapropriações e remoções para a realização de obras, passando pela restrição à liberdade de expressão e à circulação de particulares em locais e dias de jogos, muitos aspectos deram a sensação que vigia em relação a tudo o que se referisse ao mega-evento esportivo um conjunto de ordenações “paralelo”, ao largo e muitas vezes por sobre os direitos, garantias e prerrogativas normalmente invocáveis pelos cidadãos nacionais e/ou oponíveis à ação estatal. O que talvez ignorem as tão bem intencionadas vozes é que aqueles que vivem o dia a dia dos eventos futebolísticos no Estado de São Paulo há muitíssimo tempo (dezenove anos, para ser mais exato) experimentam uma inusitada e teratológica situação de exceção, onde as estruturas e princípios que regem o funcionamento de nossa sociedade pretensamente democrática parecem ceder lugar a imperativos “práticos”, clamores passionais, idiossincrasias e preconceitos de todas as ordens (é exemplar, nesse diapasão, a justificativa que rolou solta na boca de autoridades e jornalistas para a liberação da venda de bebidas alcoólicas nos estádios durante a Copa: “trata-se de outro público”). Incitado por uma fatia da imprensa esportiva que não limita sua atividade à análise opinativa do que acontece dentro das quatro linhas e à cobertura informativa dos acontecimentos que circunscrevem o evento, arvorando-se em púlpito dos mais inconfessáveis sentimentos e interesses, o Ministério Público do Estado de São Paulo passa a coonestar a gradual supressão, no âmbito dos eventos futebolísticos, das liberdades democráticas que lhe incumbe precisamente defender. Mormente quando a projeção alcançada por essa sinistra associação com a já citada imprensa nefasta passou a render dividendos outros, inclusive de natureza eleitoral.

Sob invocações de variadíssimos jaezes, todas de altíssimo grau de subjetividade, a instituição que deveria ser a Fiscal da Lei passa a orquestrar uma série de medidas, ora no âmbito judicial, ora na interferência direta sobre o planejamento das atividades organizacionais (leia-se: policiais), de restrição de direitos e liberdades, que acabou por desaguar num ambiente em que ficou “normal” tolerar a restrição SEM PREVISÃO LEGAL à liberdade de expressão (vide as faixas proibidas, os coros censurados), do direito de ir e vir (do cidadão, por exemplo, que, não tendo o ingresso, não pode se aproximar de um estádio TRANSITANDO A PÉ POR LOGRADOUROS PÚBLICOS), do direito à associação para fins pacíficos e do princípio fundamental de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei. E num ambiente de exceção, onde o parâmetro decisório do que pode e não pode ser feito é deslocado da lei para os “sentimentos” de segurança, tranquilidade, ordem pública etc., não é difícil perceber que acabará por restar à instituição que é incumbida da operacionalidade dos eventos esportivos - a Polícia Militar, normalmente tão ciosa da observância da legalidade estrita – tomar casuisticamente um sem número de decisões sobre onde se possa ou não ficar, o que possa ou não possa ser feito, o que possa ou não ser exprimido , o que possa ou não ser portado (e não estou falando de armas ou entorpecentes: guarda-chuvas, rádios, bengalas – TUDO ISSO EU JÁ VI COM MEUS PRÓPRIOS OLHOS SER EXPROPRIADO na entrada dos estádios paulistas) etc. etc. etc. E quando digo a instituição, leia-se: o indivíduo investido na função de agente estatal, ali naquela hora, naquele lugar. É ao exclusivo arbítrio desse indivíduo que está relegado naquele momento e local o direito do cidadão brasileiro que pretensamente vive sob a égide de um Estado de Direito, com prerrogativas garantidas pela Constituição que o funda e rege.

Pois mais uma vez vem a público um membro do Ministério Público Paulista – esta coluna não conseguiu apurar se e quando será candidato a um cargo eletivo - mais uma vez de carona na enorme atenção despertada em torno da partida que definirá a permanência ou não na elite do futebol nacional de um dos clubes mais populares do Brasil, despejar o seu baú de idiossincrasias e arvorar-se em legislador, tutor e executor de uma norma de exceção que ele pretende vá disciplinar a organização do evento esportivo desse próximo domingo. Sintam o tom “impessoal” desejável de toda autoridade investida de prerrogativas públicas num Estado de Direito: “"Eu particularmente sou contra essa aglomeração no entorno do estádio. Eu prezo por um entorno mais saudável. Eu entendo que pelo fato de estar encravado no centro da cidade, com várias casas e pontos comerciais, atrapalha fazer um círculo de isolamento. Mas eu acho salutar, acho que a gente tem de buscar isso. A gente tem de acabar com isso no entorno.” (o negrito, obviamente, não está no original da matéria; o senhor promotor, estilista do vernáculo que parece ser, presumo deva ter-se valido do conhecido recurso da ênfase pela repetição). EU prezo, EU sou contra, EU entendo, EU acho... A lei??? Ora, a lei... A ilustre autoridade pública não se referiu a ela em nenhum momento! Com o que a lei considera “saudável” ele não parece preocupado, investido que está da capacidade supra-sensível de dizer e interpretar os sentimentos da sociedade! Se a vontade e a percepção do digníssimo membro do Parquet são erigidas em parâmetro da atuação estatal, quem estará preocupado com a lei??? Lá na frente a nossa máxima autoridade do estado de exceção esportivo parece se dar conta do “esquecimento” e apressa-se em citar a lei que, segundo ele, proíbe a venda de bebida alcoólica num entorno de 200m dos estádios. E quanto ao “isolamento”? E quanto a acabar com as “aglomerações”? E quanto à proibição de se aproximar do estádio sem ingresso? E quanto à impossibilidade de se ostentar cartazes de protesto contra os desmandos da polícia? E quanto a levar o seu guarda-chuva para o estádio? ONDE DIABOS ESTÁ A LEI QUE RESPALDA TAIS INTERDIÇÕES AO CIDADÃO COMUM???

O “costume” da torcida se reunir em torno do estádio em dias de jogos “não é visto com bons olhos pelo Ministério Público de São Paulo”, diz a matéria jornalística. Não vou perder meu tempo, obviamente, problematizando a questão acerca do quanto a lei pode ou deve se sobrepor ao costume ou contrariá-lo - isso seria sociologia, coisa de comunista, com a qual as nossas doutas autoridades e nossa preclara imprensa esportiva não desperdiçarão seu precioso (literalmente) tempo. A despeito disso, sinto-me no direito de perguntar: afinal, quem são “os olhos do MPSP”? Porque, diferentemente do que poderia supor um cidadão de boa-fé, não parecem ser os olhos da lei. Perderá tempo quem for buscar nos textos legais, na sua interpretação doutrinária ou jurisprudencial, a definição do que é “tranquilo”, do que é “saudável”, do que “a gente tem que acabar”. O preclaro doutor Paulo Castilho disso já se incumbiu.

(publicado originalmente em 05/12/2014 em Turiassu 1840)

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Cultura da boca pra fora

Aos amigos, Juca Ferreira; aos inimigos, Celso Jatene*


Quando eu defendo a tese de que há que se desenvolver uma consciência e uma responsabilidade cultural, assim como se desenvolveram a consciência e a responsabilidade ambientais, os tarefeiros da política acham que é abstração intelectual.

Quando eu digo que qualquer medida governamental - desde a concessão de uma licença, um alvará, até a formulação de políticas públicas, passando pela elaboração legislativa que disciplina a vida social – tenha que obrigatoriamente passar por uma avaliação de impacto cultural, os intelectuais flanantes por suas geleiras e altas montanhas não conseguem perceber a relevância e o alcance concreto dessa exigência.

Quando eu digo que é uma baita incoerência defender nas tribunas, seminários e congressos partidários os recursos para o ponto de cultura da ciranda-do-toco-fincado-da-tia-maricotinha-da-quarta-praia-depois-da-barra-do-riacho-fundo e não dar um mísero pio quando tramita o projeto de lei que obriga a fechar o butiquim – aqui no Centro de São Paulo, bem antes da quarta praia... - na hora que eles bem entendem, neguinho fica com cara de ué, sem (querer) entender o que tem a ver o cós com a cueca.

Não serei o primeiro a sacramentar que o futebol é muito possivelmente a mais importante ritualização coletiva do funcionamento, dos dilemas, da auto-representação, dos antagonismos etc. na sociedade de massas pós Revolução Industrial – fosse lá em seus primórdios de afirmações nacionalistas e sobrevivências grupais, seja cá no mundo eletrônico globalizado. Também não preciso me dar ao trabalho de descrever os desdobramentos simbólicos, psicológicos, sociais, antropológicos, políticos etc. dessa poderosa ritualização. Para quem, portanto, não entendeu que o futebol é muito mais do que o pode ser visto dentro das quatro linhas, indicaria o caminho da biblioteca. Se necessário, precedido do Caminho Suave.

Pois não é precisamente o antagonismo das torcidas o elemento de ritualização fundamental das tensões e conflitos insculpidos no mais profundo íntimo das sociedades modernas, de desigualdades reais aplainadas pela máscara da igualdade jurídica? Não é o enfrentamento das energias contrárias metáfora e simulacro das grandes dualidades que presidem inúmeras interpretações do universo, só não mais antigas que as representações circulares e esféricas que encarnam o equilíbrio desejável dessas contrariedades, não por acaso dominantes no grande teatro do futebol, da bola ao estádio? Não estarão também aí celebradas as incursões pelo território “inimigo”, elemento de mediação de forças naturais e sociais que remete a domínios compartilhados até mesmo com o mundo animal?

Mas para além de toda generalidade do jogo em si e dos elementos que o circunscrevem, na nossa aldeia em particular, as construções simbólicas e culturais que se desenvolveram a partir e para além do jogo, mais precisamente em torno do ato de “ir ao futebol” e do consectário “assistir o jogo do seu time”, são de uma riqueza e de uma complexidade que transcendem imensamente o que ali meramente se vê - que, não fosse o que acima se disse do futebol em geral, poder-se-ia até dizer simplório, em face de toda a delicadeza, brutalidade, força, sofreguidão, expressividade da construção dos “entornos” todos. Para quem, então, forjou boa parte de seus entendimentos sobre esse mundo nos interstícios de tempo e de espaço que separavam o transcorrer modorrento e linear da vida quotidiana da epifania atemporal de tantos pertencimentos que se dá no seio de um estádio de futebol, como pode ser entendido o risível conselho secretarial “assista o jogo pela tv”???

Para quem não pode compreendê-lo, por falta de vivência, não há aqui, infelizmente, biblioteca que dê jeito. Mas não sendo dado ao senhor secretário valer-se dessa escusa, homem de arquibancadas que foi, como compreender a falácia de seu discurso, senão como parte de um muitíssimo bem orquestrado movimento que, gestado nas catacumbas gélidas e escuras onde há muito e à sorrelfa conspiram a imprensa rastejante, os dirigentes corruptos e os demais manipuladores e beneficiários dos mais inconfessáveis interesses que circunscrevem a mercantilização desse patrimônio popular, agora adrede se lança ao ataque, indisfarçadamente, pelos mais variados flancos? Ou será coincidência que num interregno de três dias se ouçam em coro cuja afinação humilharia os meninos de Viena vozes tão distantes quanto manjadas como as de um Flávio Prado, de um Leandro Alexandre Pretzel Quessada, de um Paulo Nobre, somadas à do próprio Jatente?

É por isso que eu gostaria de ouvir o que têm a dizer meus companheiros de trincheira política, sobretudo em face da sensibilidade a essas questões que tem sido há tempos demonstrada por proeminentes figuras do nosso campo, como o Ministro dos Esportes, Aldo Rebelo e o recém eleito deputado Orlando Silva. Porque o Senhor Jatene é o responsável pelas políticas públicas para o esporte na Capital de São Paulo. Porque, afinal, nós fazemos ou não fazemos parte desta gestão? É só pra ocupar cargo? Ou não tem a ver o cós com a calça? Ou essa mentalidade não dará o tom , na hora em que for pra discutir pra valer, no âmbito do esporte, as questões da preservação identitária da Cidade, da afirmação das diversidades, da tolerância, da expressividade, da resistência cultural?

Está na hora, de uma vez por todas, do prefeito Fernando Haddad enfrentar as divisões que há no seu governo, a fim de que a inclinação política da gestão possa ficar mais clara e mais conforme tudo aquilo que o ouvimos afirmar, ao vivo e a cores, com as veias do pescoço saltadas, nos atos finais da campanha pela reeleição da Presidente Dilma. Até para a gente saber até onde é para acreditar. Senão vira o samba do crioulo doido: o que é da seara da Secretaria da Cultura, “ok, tudo bem, vamos discutir cultura em alto nível”. O resto, vá lidar com a tropa de choque da “base de sustentação”. Só que cultura, minha gente, não é só teatro, música e virada. Cultura é comer, morar, passear com a família, tomar cerveja, ir à igreja, enfeitar a casa, fazer a feira, reunir os amigos, assistir o futebol e quantos mais etcéteras puderem ser colecionados.

Se não formos nós a trazer para a pauta essas questões, companheiros, quem será?


* a propósito de declaração do Secretário de Esportes do Município de São Paulo, Celso Jatente, acerca da torcida única nos estádios.
(Texto publicado originalmente em Turiassu1840)

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Jorge Costa


A primeira vez que o vi tive a certeza de que se tratava de um bamba. Porque eu era garoto, engatinhava na noite, e os sambistas que já trombava aqui e ali, um pouco nos raros espetáculos, um tanto pelas quadras das escolas no de vez em quando, não correspondiam ao estereótipo cravado no imaginário geral brasileiro. Nele, muitíssimo pelo contrário, estava tudo lá: as correntes, medalhões, anéis, a capanga de couro, a boina, a elegância negra, o carisma, as boas companhias, o sapato branco. Aliás, como nesses idos a sexta-feira ainda era o dia que por excelência dava pra fugir para a noite do Centro, quando o via pelo legendário Pena Dourada o branco não era só no sapato; como de preceito, a fatiota todinha luzia de uma alvura que ressaltava ainda mais sua beleza negra madura.

Esse era Jorge Costa, compositor afamado, disputado até, no seu auge pelos anos 60 e 70. Alagoano de nascimento, cedo veio bater no Rio de Janeiro, tendo seu talento musical e a mão das musas o levado ao Morro da Mangueira, onde viria a se tornar grande companheiro de um dos maiores representantes do gênero em que mais tarde tanto se destacaria: Padeirinho. Mas foi em São Paulo, onde uma linhagem muito característica do samba sincopado barbaramente florescia – com expoentes como Caco Velho, Isaurinha Garcia, Germano Mathias e, mais tarde, Miriam Batucada – que Jorge se consagrou entre o nono círculo dos maiorais, precursor do tipo de divisão e levada que mais tarde caracterizariam um outro subgênero tão particular: o samba-rock.

Mas quem conheceu seus sambas pela voz de intérpretes tão consagrados como diversos, num espectro que vai de Ângela Maria a Bezerra da Silva, passando necessariamente por Germano Mathias, Noite Ilustrada, Jair Rodrigues, Nelson Gonçalves, Beth Carvalho, João Borba entre outros, não imagina o sambista magistral, domínio absoluto da percussão e do canto - divisão e suíngue incomparáveis -, verdadeiro “show man” da roda de samba. Sem falar no já citado carisma. Não conheço sambista em São Paulo que, tendo com ele minimamente convivido, não se fascinasse e deixasse influenciar, por qualquer forma, pela sua arte e pela sua figura. Wilson Sucena, Chico Aguiar, João Borba, Valtinho do Violão, a saudosa Denise Camargo e esse que vos escreve talvez sejam os mais confessos, mas certamente não os únicos.

Pra apimentar a sexta-feira e dar o ponta-pé no fim de semana com samba da melhor estirpe, um pouquinho da arte do genial – e hoje tão pouco lembrado – Jorge Costa. Porque amanhã é sábado e tem mais, no Ó do Borogodó. Ao vivo e a cores.


quarta-feira, 4 de junho de 2014

Credo

(para Antonio Nóbrega)



O Brasil em que eu acredito não é esse senhor carrancudo que, alquebrado pelas amarguras – reais, realíssimas! - da existência, põe-se esculhambar aqueles tantos que fazem da festa a sua maneira de reinventar a vida. Porque é esse também um jeito de não sucumbir à vergasta quotidiana. Reinventar a vida pela festa é dar existência, ainda que efêmera, ainda que tão sutil, a uma outra ordenação do mundo, destituída da mácula da opressão, as dores todas ressignificadas. É postular que tudo o que está aí, do jeito que está aí, não precisa ser necessariamente desse jeito; de que há uma outra existência tão possível, tão real quanto esta.

O Brasil em que eu acredito é um dos sonhos mais bonitos que a Humanidade já sonhou: que era uma vez um lugar habitado por povos tão diversos como as estrelas do céu. Para onde vieram, certo dia, viajantes de um mundo tão outro, de costumes tão outros, dispostos a construir uma nova morada. Viajantes que arrastaram consigo para esse lugar, contra a sua vontade, mais um sem número de povos outros, numerosos e diversos como as areias da praia. E que, uma vez vindos, tais viajantes trouxeram na rebarba de suas boas e más intenções, tanto aos nativos do lugar como aos que arrastaram consigo, seiscentos e uma luas de muitas dores, mortes, sofrimentos e destruição. Mas exposto a todo esse caudal de martírios, ao invés de ver brotar cidades cinzentas a transbordar de ódio e ressentimento, esse estranho lugar gerou jardins floridos de tolerâncias e entendimentos, com flores de uma malemolência brejeira, bailando bailados nunca imaginados, embaladas pela música mais bela que jamais se ouviu.

Mas um certo dia pragas horrendas se puseram a assolar o jardim com o qual a Humanidade sonhava. E as pestes se valeram das fraquezas tantas que habitaram desde sempre o seio desse jardim forjado e fornido entre dores tantas, entre precariedades também tantas. E cresceram. E se alastraram. E as flores começaram a desistir de bailar seu bailado espontâneo à brisa morna das manhãs ensolaradas, desacreditadas do poder de sua beleza.

Na hora em que todos aqueles que nos obstinamos em sonhar um sonho tamanhamente possível nos vemos arrastados de nossas redes e nossas varandas ao meio da rua da amargura e da sofreguidão, atirado às nossas faces o libelo terrível - de incensarmos e cultivarmos uma ordem outra, de festas e músicas, brinquedos e bailados, delicadezas e sabidices, preguiças e jeitinhos - eu rezo.

Rogo e imploro ao Anjo Barroco do Brasil: devolve-nos a incerteza de tuas pernas garruchas! Ensombreia as claridades das arenas arquivisíveis com as tortuosidades de seus caminhos tecidos pelos gramados esburacados. Deus que andou pelas esquinas, abre caminhos improváveis por entre as retrancas da amargura, das eficiências e estratégias. Reciviliza teu povo, esquecido da alegria, da molecagem e da mandinga. Ensina de novo aos teus filhos os olhos de se perder no céu escuro, pontilhado de não-caminhos, prenhe de desvãos. E desvia-nos da obsessão da luz, que, como advertira o poeta, nos trouxe às portas do inferno.

Amém.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

O jogo


No tempo em que os bichos falavam e a noite era abrigo das almas solítárias e passantes, fora um grande andarilho das madrugadas. Não mais, por certo, violado o santuário, profanado o mistério, banalizado o sagrado. Mas aquela madrugada temporã espocou como epifania de pertencimentos julgados dormidos. E saiu; costurando as estranhezas com uma habilidade não se sabe onde mal preservada. Mas se foi e se deixou levar, quase obstinado, como a submeter as convicçções empoeiradas a uma espécie de experimentum crucis. Já se vê...

E as andanças todas, e as tomanças, os acertos e os desacertos, os houve todos, ao gosto do freguês. Mas haveremos de nos contentar com a cena final da madrugada. Era num butiquim. Dos mais ordinários – e não no bom sentido, para os que me entendem. Por qualquer estranho motivo, passava na tevê do bar o videoteipe de um antigo, antiquíssimo jogo de seu time. Épico. E como se o luzeiro fatídico o puxasse pelo braço do torpor onde boiava, viu-se tragado para uma dimensão outra. E torceu, como há muito não sucedia. E sofreu. Desesperou-se com os gols perdidos, secou os ataques adversários, xingou o juiz, completamente alheio a qualquer dissensão temporal. E não que a ignorasse, anote-se bem. Conhecia o jogo! (aquele jogo...!) Sabia perfeitamente, não só do resultado, mas da sucessão toda dos acontecidos, dos lances, dramas e polêmicas. Não obstante, envolvia-se barbaramente em cada jogada, absorto, transfigurado, dedicado à tarefa primordial de torcedor: torcer.

Pois a Copa do Mundo outra vez nos bate às portas. O clima pouco a pouco se instaura, os sentimentos começam a despertar, ainda que tão absolutamente diversos do que querem pintar os marqueteiros bancários e galvânicos com seus pincéis do desconhecimento das coisas simples, da gente comum; ainda que uns tantos em nome do país estejam diariamente passando atestados de sua disposição de se converter à mesmice mal-humorada do mundo, de abandonar o que ainda tínhamos de singular, de brejeiro, de macunaímico. Na madrugada que atravessamos, restos e ecos de uma noite recém-antiga perduram ante os sinais da iminente claridade destruidora das sutilezas todas urdidas por entre os caminhos esconsos. O furor solar do futebol ultracapitalista, mercantilizado e globalizado, convive uma vez mais com os ecos de uma noite mal dormida, de fantasmas ainda não retornados a seus covais: nacionalismos, tabus, paixões, rancores, sanhas conquistadoras, preconceitos, rivalidades, tribalismos, guerras.

Entre o torcedor solar dos oba-obas, eventos, camarotes, badalações e muito verde-amarelo fashion, de um lado, e o masoquismo noturno e cinzento dos monopolistas dos sentimentos ditos verdadeiros, de outro, paira a figura diáfana do nosso torcedor da madrugada. Sabedor de que a história não vai mudar – e que talvez nem tenha que mudar -, completamente envolvido e absorto por um jogo suspenso no tempo e no espaço, com vida própria e independente, que está sempre a se jogar. Que ao mesmo tempo é único e são todos. Cujo resultado, ainda que conhecido, desimporta significativamente.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Jair de Todos os Sambas




















Partiu ontem para a morada dos Ancestrais uma das minhas mais marcantes referências na arte de cantar: Jair Rodrigues. Mas apesar de um excepcional intérprete do samba, com grande domínio de ri...tmo, cadência e divisão, sem falar em sua extraordinária voz; apesar de ter consolidado sua imagem artística como “sambista” nas duas primeiras décadas de sua carreira; apesar de ter consagrado composições de importantíssimos e incontestáveis sambistas de estirpe como Dedé da Portela, Dida, Gracia do Salgueiro, Wilson Moreira, Nei Lopes, Niltinho Tristeza, Jorge Costa, Ary do Cavaco, Otacílio da Mangueira, Martinho da Vila, Zuzuca, os baianos Edil Pacheco, Tião Motorista e Ederaldo Gentil, Velha da Portela, Venâncio, Bala entre tantos e tantos outros; apesar de figura decisiva no meio musical nos anos 70, sobretudo, a influenciar a carreira de importantes nomes ligados umbilicalmente ao samba como Clara Nunes e Os Originais do Samba, só pra ficar nos mais evidentes; apesar de ter gravado diversos discos dedicados somente ao samba, alguns de grande qualidade, tanto no que respeita a repertório e autores, como no que tange a interpretações, arranjos, instrumentação e produto sonoro final; apesar de pessoalmente ser uma figura querida e respeitada quase unanimemente no meio musical... Apesar de todos esses e outros pesares, Jair há muito é tratado com monumental indiferença no nosso querido e muitas vezes estranho mundinho do samba “stricto sensu”. E com isso não me refiro aos coiós de mola que vivem por aí elaborando seus “index” pra cá, sapecando os seus “nihil obstat” pra lá, à guisa de Santo Ofício. Falo da ausência quase absoluta do repertório do paulista, tirando um ou outro clássico, em praticamente todas as rodas de samba pelas quais tenho passado nesses quase trinta anos.

 Sempre me perguntei pelos porquês. As hipóteses a se levantar são muitas, evidentemente, e talvez nenhuma esgote a questão. A mais simplória diria que Jair não fazia questão de se apresentar (socialmente, simbolicamente, visualmente etc.) como um sambista, nem fazia questão de cumprir os salamaleques, beija-mãos e bate-cabeças comuns no metiê que tão bem conhecemos. Outra poderia se reportar ao fato de que seu repertório desde sempre tenha transitado por uma gama mais vasta de gêneros, com o agravante de que o samba tenha perdido ao longo do tempo até mesmo a preponderância da primeira hora – e a derivada agravante: que isso se tenha dado mais por tendências gerais do mercado do que por uma opção essencialmente artística. Se fôssemos dar asas à síndrome de Ubaldo, poderíamos pensar que Jair nasceu paulista e assim se manteve, não tendo se “acariocado” como, gaúchos, mineiros, maranhenses e baianos ilustres, seus colegas e contemporâneos. Talvez um pouco de cada coisa, somado ao fato evidente de que as fronteiras culturais que muitas vezes impomos na busca fundamental da preservação de identidades e modos de vida, muitas vezes deixem exilados alguns concidadãos que nos teriam muito mais a dar e ensinar do que os que vivem-nos distribuindo abraços e continências.

 Afortunamente, a roda dos Inimigos do Batente também nisso se constituiu como exceção. Sempre cantamos um sem números de sambas “criados”, como se dizia antigamente, pelo grande Jair, desde os que se transformaram em clássicos absolutos como “Gotas de Veneno” (Wilson Moreira e Nei Lopes), ou “O ouro e a madeira” (Ederaldo Gentil) até pérolas quase desconhecidas como “As lavadeiras da favela” (Paulo Sette), passando por saborosos partidos como “Quero meu boi” (Gracia a Pedrinho do Borel) e “Viva a mulher da gente” (Umberto Silva e Curumba) – aliás, era um grande intérprete do partido alto. Por essa admiração, por essa referência, por essa presença constante na minha formação musical e na formação do repertório - e mais do que isso: na proposta de repertório! – dos Inimigos, sonhamos em tê-lo como um dos homenageados da série “O Samba na Roda: em Prosa & Verso”, que os Inimigos realizaram no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo em 2013, comemorativa dos dez anos do grupo. Infelizmente, por uma série de razões que não cabem aqui, não conseguimos tirar o sonho do travesseiro.

A homenagem virá, por certo, neste sábado, no Ó do Borogodó. Póstuma, muito infelizmente. Mas que perdurará enquanto nosso samba soar pelos caminhos todos de Ilu Ayê. Axé!

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

“Eu tenho é medo do carnaval de hoje”


A frase que está no título deste texto não é de um pastor evangélico, da presidente da liga das senhoras, nem do CONSEG (pra quem não é de São Paulo, nem se ocupe em saber o que é...) ou da associação de moradores do meu bairro. É do gênio da raça, do grande entendedor do Brasil; do compositor, poeta e escritor Nei Lopes. Ele mesmo. E se explica: mestre Nei se refere à grande transformação que fez do Carnaval de rua, que era o reino da espontaneidade, da gratuidade, do encontro, um privilegiado espaço de reprodução da lógica mesma do dinheiro, do negócio, do poder. Nada diferente do que ocorreu com o carnaval das escolas de samba, com o futebol, com os butiquins etc. Etc. Etc. Mas nada também que tenha determinado até agora que não houvesse mais os butiquins libertadores dos encontros improváveis, o futebol sonhador das peladas a pé descalço, os instantes de magia e transfiguração pelas avenidas tantas pelo país afora. E ouso sonhar que não determinará também a morte do Carnaval em que a gente acredita. E espera a cada ano. Ao qual a gente se entrega.

E esse Carnaval - como já bem disse meu para sempre fraterno-irmão Luiz Antonio Simas – é da espontaneidade e da subversão. Ou da subversão pela espontaneidade. Porque o que se subverte, na verdade, é o dia a dia das preordenações , da previsibilidade, dos formalismos, onde a vida é mediada por soluções antecipadamente delineadas, senão em seus conteúdos, ao menos em suas formas. Com os resultados que a gente vê... A hierarquia, o poder de ditar as regras, os lugares predefinidos são a sustentação e a expressão mais visível dessa ordem a ser subvertida. A lógica da eficiência, o cálculo de meios e finalidades e a técnica, sua filha dileta, são seu modus operandi por excelência. Por isso essa ordem não resiste e se quebra pelo gesto sem finalidade, pela brincadeira que se esgota nela mesma, pelo abandono ao “seja o que Deus quiser”; pelo descaminho, pela total imprevisão, pelas formas nunca acabadas que se reinventam a todos os instantes, pelas soluções inusitadas, pelas estéticas aberrantes, pelas inversões dos papéis.

Por isso o “bloco do eu-sozinho” é a celula mater desses dias, encarnação daquele que sai de casa sabendo “apenas que vai para a rua imolar-se nos blocos e cordões, receber a extrema-unção com água benta de teor alcoólico e morrer até a Quarta-Feira de Cinzas”, sem itinerário, sem compromisso, sem programação. E o bloco de sujo é sua perfeita correspondente coletiva, sendo nada mais que um ajuntamento de “eu-sozinhos” que se encontram no acaso, no átimo, na fresta, no diáfano. Esses são filhos legítimos e diretos do velho entrudo. Tudo o que demanda algum grau de planejamento, organização, ou mesmo intencionalidades outras, se desvia desse sentido originalíssimo.

Quem vai para o carnaval PARA beber, ou PARA paquerar, não é folião. Não pertencem à esfera sagrada do Carnaval os “blocos” que saem para defender ideias, bandeiras, ou reivindicar isso e aquilo. Mesmo os folguedos todos que povoaram os carnavais Brasil afora, ouso dizer – malgrado o respeito quase devocional que já nutri pelas escolas de samba e ainda nutro, por exemplo, pelo maracatu rural de Pernambuco - já são corruptelas desse espírito fundamental. Populares, indubitavelmente, subversores eles mesmos, claro, pela encarnação da ludicidade, da teatralidade, da desconstrução-reinvenção da vida. Mas, via de regra, apenas identificados a posteriori com o Carnaval, por aproveitarem o relaxamento da vigilância e da repressão durante esses dias, expressões que foram e são de negros, índios, pobres, marginalizados, despossuídos, os excluídos todos da festa oficial.

E assim também, obviamente, nossos atuais blocos de rua serão também simulacros apartados dessa entrega “exusíaca” total (“quem tem Exu não precisa de Dionísio”). Mas são as nossas tentativas possíveis, humildes, desesperadas, de reconstrução dessas possibilidades, dessas não-formas de rebrincarmos o nosso Carnaval, a despeito, contra ou até “aproveitando” a onda do oba-oba geral. Por isso o carnaval de que Mestre Nei tem medo – e eu pavor! - vai lá em cima minúscula. Por isso, meus amigos, aproxima-se o dia mais importante, mais esperado do ano, que para mim já foi o sábado de abertura do Carnaval, hoje é o domingo que o antecede. Mudou o dia, mudou o lugar, mudaram os jeitos, mas não o significado. O tanto que posso morrer, morrerei; nem mais, nem menos. Essa é a minha jura de folião.

E porque não posso por decreto impor a tolerância àqueles que continuam a apostar nos moralismos como fórmulas de salvar os outros; porque não posso apartar do poder todos os que dele abusam em seus exclusivos interesses; porque não posso abrir a forceps os olhos, mãos e braços de uma sempiterna casa-grande aparentemente determinada a morrer abraçada aos seus anéis; porque não posso banir do nosso convívio veículos de opinião que são a encarnação mal-disfarçada dos mais torpes, sórdidos interesses; porque não posso estrangular o sujeito que estaciona, por desleixo ou prepotência, o seu carro ocupando duas vagas; porque não posso resgatar da mão dos usurpadores um joguinho só que seja do meu time, “assim como era no princípio”... Para eles e por eles todos – moralistas, poderosos, proprietários, gângsters, usurpadores, egocêntricos - oferecerei mais uma vez, a partir de domingo, vestido de sereia ou de Emília, o meu particular holocausto. Afirmação singela, mas peremptória, da possibilidade em que eu acredito e que nessas terras foi plantada.


Evoé!

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Não põe corda no meu Bloco


Conversava por esses dias com meu dileto amigo Luiz Antonio Simas, traçando uma antárctica mofada e uma sardinha frita no Bode Cheiroso. Falávamos, nas brechas das coisas que realmente importam, de como em outros tempos o inimigo visível da tradição era o discurso “modernizante”. Nos estranhos dias que correm, entretanto, é recorrente o uso da própria tradição com vistas a absorver, digerir, neutralizar e, assim, liquidar toda a força motora dessa mesma tradição.

E eis que voltando aos dias sem antárcticas e sem sardinhas deparo de cara o engraçadíssimo seminário – várias pessoas já me recriminaram, dizendo que a coisa é grave, mas eu, infelizmente, não consigo parar de rir - “Carnaval de rua”, a se realizar na próxima semana, por iniciativa da Prefeitura de São Paulo. Breve aperitivo dos participantes, segundo a programação oficial divulgada pela secretaria de cultura:

“Felipe Ferreira - Possui graduação em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1993), mestrado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996), doutorado em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002) e pós-doutorado em Letras pela Université Paris III - Sorbonne Nouvelle.”
(um pouco de sabedoria pra nos esclarecer)
“Guilherme Belitani - atualmente é Secretário de Desenvolvimento, Turismo e Cultura, além de sócio diretor-geral e professor da Faculdade Baiana de Direito.”
(desenvolvimento, turismo, direito: temas candentes na alma de qualquer folião)
….
"Domingos Leoneli - Publicitário e atual Secretário de Turismo da Bahia."
(o que seria do Carnaval sem os publicitários e sem a Bahia???)
“Tania Fayal - Umas das criadoras [sic] do Carnaval de Rua do Rio de Janeiro.”
(eu juro que não estou inventando! Tá escrito lá...)
….
“João Luiz Passador - Coordenador do Gpublic – Centro de Estudos em Gestão e Políticas Públicas Contemporâneas. Possui graduação em Administração pela Fundação Getúlio Vargas, com especialização na Università Comerciale Luigi Bocconi (Milão, Itália), graduação em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, mestrado em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas e doutorado em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas. Atualmente é professor associado do Departamento de Administração da Faculdade de Economia Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.”
(esse eu fiz questão de transcrever por inteiro)
“Sergio de Souza Merlo - Coordenador Operacional da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Bacharel em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pela Academia de Polícia Militar do Barro Branco e em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, USP. Mestre e Doutor em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar.”
(...)

E vai por aí. Seu Carlão do Peruche tá perdido nessa também, com mais uns dois ou três que alguma vez na vida talvez tenham saído de casa só com uma fralda de bebê. Eu aqui, ingenuamente, enquanto só tinha batido os olhos meio de relance no título do seminário, preparei até um curriculozinho que achei que dava pra concorrer:

Nome semi-completo: Emília Mônica Smurfete Nega-maluca Curupira Sereia Pirilampo de Tejipió
Profissão: malocada, 'pra não dar o que falar'...
Currículo: não se lembra de quase nada, por estar quase sempre de porre. Das vagas lembranças, uma particularmente cara era de tomar ônibus de olho fechado e descer na primeira batucada que encontrasse. Testemunhas dão conta de que dormiu mutuamente escorado em Cláudio Camunguelo, no meio da barafunda da dispersão da Bateria da Portela.

Mas a Stefânia me desencorajou logo. Depois entendi.

Eu sonho com o dia em que o prefeito, os secretários, as instituições, a academia, os publicitários, legisladores, polícias e as putas todas que os pariram reconheçam, simples e finalmente, que o Carnaval é feito dos quatro dias em que eles - e seus títulos, propriedades, cargos, graduações e pós-graduações - não têm IMPORTÂNCIA ABSOLUTAMENTE NENHUMA. Que o Carnaval é, por excelência e por definição, a subversão e supressão da ordem cotidiana de hierarquias, poderes, mandos e ordenações. É o império do descompromisso, da incerteza, do nivelamento, do aleatório, da rua. Do HOMEM COMUM.

Eu sonho, simplesmente, com o dia em que eles nos deixarão em paz. Aí haverá Carnaval de novo.