João Antônio*
A tradição, bem
portuguesa, foi adotada no Brasil colonial e é coisa bem nossa. Teve
momentos mais gloriosos em que a polícia permitia usar nomes de
políticos, delegados ou ministros. E, apesar do progresso, nos
subúrbios cariocas, a malhação do Judas continua viva, firme,
principalmente para a molecada e a rapaziada do Largo da Cancela, da
Barreira do Vasco e do Jacarezinho. E já que nomes importantes não
podem ser malhados, a moçada fere, desce o pau e mete fogo nos
amores, futricos, fofocas e mazelas dos vizinhos e das vizinhas.
Nem chuva renitente,
nem camburão de Polícia, nem abaixo-assinado impedem a malhação
do Judas no Sábado da Aleluia nos lugares em que o costume é
tradição viva na Zona Norte. A rapaziada trata de remexer, com
espírito e humor, muita vez expresso em palavrões e licenciosidade,
a vida e o amargo da vida suburbana. Por uma coincidência
fotogênica, o Rio esquecido, pobre, ignorante salta para os corpos
dos Judas.
Assim, mazelas de
maridos traídos, prostituição levada ou flagrada dentro dos lares,
desmandos do jogo do bicho, falsas virgens virtuosas e homossexuais
confessos ou incubados vêm a público nos cartazes, enquanto a
molecada miúda, numerosa, peitos nus debaixo de sol ou de chuva e
paus na mão, aguarda o momento da malhação e do atear fogo.
SILÊNCIO NO LARGO DA CANCELA
A molecadinha e a
rapaziada de São Cristóvão, no Largo da Cancela assistem
constrangidas, decepcionadas, ali por volta das nove e meia de Sábado
da Aleluia, à chegada encabuladora do camburão que limpa, rapa,
retira seus judas já tradicionais do largo e obriga a moçada a
catar outros tantos.
Mesmo tangida pela
polícia que age em nome da ordem e do respeito, a garotada está
disposta a continuar a tradição e arrasta seus judas e testamentos
(inscrições) para a Rua da Liberdade, ruela próxima ao Largo da
Cancela. São seis-sete judas e acabam executados a pau, palavrada e
fogo na marca das dez da manhã, que ninguém espera o meio-dia para
o pau comer.
Mãos gordas, zelosas e
temerosas impedem na ruela chamada da Liberdade que os filhos menores
– pelo menos os menorzinhos de seis anos – participem do
movimento que ocupa todos e envolve donos de botequim, homens que
escrevem jogo do bicho, meninos, mocinhas, rapazes e velhos curiosos,
bisbilhoteiros, sorridentes ou cooperantes.
O pequeno mundo da rua
da Liberdade, seu ambiente de futricadas, fofocas, pinimbas e amores
vai sendo passado a limpo, sem falsas peias e maiores delongas pela
crônica dos testamentos penduradas em cartazes nos judas. A vida
enxerida de Gracinha, perigosa de Carioca e matreira do
escrevente de bicho Arerê vão sendo expostas em português do
morro, palavras licenciosas e objetivas. Os tipos mais populares são
ridicularizados, os mais calados também. Poucos vão escapar ao
testamento. Desmandos do bicheiro, da esposa infiel, do gabola, do
mulherengo, do falso tímido e do homossexual dissimulado pelo bom
comportamento são pintados cruamente.
A Zona Norte acontece
em preto-e-branco. Rapazes e mocinhas, íntimos da vida suburbana,
deliciam-se com os ditos infamantes. Mães, pais e esposas atingidas
estão fulos e garotos, ás vintenas, mesmo sem entender, fazem um
clima de polvorosa na rua comprida e sem largura, ruela, que é a da
Liberdade, em São Cristóvão.
Judas pendurados e
enforcados botam as mágoas do povo pra fora e ouvem os xingos do
motorista de caminhão que não pode atravessar a rua com tanto
movimento.
Gentes mais antigas
comentam que, de ano pra ano, o judas está mais fraco, a polícia dá
em cima, procurando evitar que eles ofendam as autoridades.
Antigamente era melhor, segundo uma velha senhora que segura o seu
neto para que ele não caia na gandaia na Rua da Liberdade:
‒ A rapaziada mexia
com todo mundo e
com gente grossa. Uma vez, me lembro, fizeram um judas para o
Venâncio Veloso, das Casas da Banha e outra para o delegado Padilha.
Hoje ninguém mais mexe com eles, só fica bulindo é com o pessoal
daqui mesmo, principalmente com a vida das mocinhas e das mulheres.
E,
enquanto o Largo da Cancela não ferve, vigiado pelas idas e vindas
do camburão, a Rua da Liberdade explode com palavrões e rumor. E
pára o movimento doméstico de manhã de sábado. Mães vêm para as
janelas, a rapaziada de bermuda sai à rua e até o ponto do bicho
tem de parar.
Alguns
testamentos são praticamente escritos com palavrões claros e
francos. Outros, mais leves, como o do Arerê que se vê obrigado, em
pessoa, a assistir a malhação do seu próprio Judas:
TESTAMENTO DO ARERÊ
1
‒ O
meu pique (corrida) para o Oto.
2
‒ A minha calça para
o João.
3
‒Minha blusa para o
Luís Orlando.
4
‒ Minha cabeça para
o Miguel.
5
‒ Minha casa no morro
para o Carioca.
6
‒ Meu sapato para o
Luisinho.
Já
o Testamento de
Glorinha, pregado
a uma parede, tem uns quinze itens e dedica partes íntimas do corpo
a este e aquele e se refere a certas qualidades de forma aspada, como
“donzela” e “virgindade”, 'porta-seios” e por aí assim. O
Testamento de
Carioca
revela dois homossexuais incubados e sem coragem para a confissão.
MASSACRE
NA BARREIRA DO VASCO
Pendurado
a um poste defronte a uma companhia de armazéns gerais, um
judas-mulher. Fantasia de mulher, bolsinha de couro, e o resto do
componente de colares, embelecos, penduricalhos. Expõe palavrões
infamantes e xingos, onde as palavras “pegadeira” e “piranha”
são as mais levez. E tome humor carioca.
Mulheres
faveladas se aproximam, enfiam-se no meio da molecada magra e
maltrapilha, fuxicam a vida íntima das vizinhas, conhecidas,
desconhecidas e rivais. Sem quê, nem pra quê, os palavrões voam.
Um ressentimento:
‒
Eu
queria pegar quem escreveu isso.
Mas
são dez e meia e a malhação começa. Depois das pauladas, a cabos
de vassoura, rápido começa o atear fogo. O movimento da Rua Ricardo
Machado é interrompido, debaixo de pau. A bolsa de couro da
judas-mulher voa longe e, alguém disfarçadamente, a carrega, a
manda, a enruste, no meio da confusão. À porta do botequim,
charlando e rindo, homens bebericam cachaça e cerveja.
Fogo,
pau e água
Muita
coisa leva o povo da Zona Norte a viver já no passado. Até o judas
de Sábado da Aleluia, que já foi melhor, mais intenso, a rapaziada
terrível mexendo com todo mundo, criando confusão, prisões, brigas
e até mortes. Estava disposta a tudo nas inscrições. Na palavra
dos antigos:
‒
Só
não chamavam de santo porque o cara não era mesmo.
De
resto, a vida pública, principalmente a polícia, os atacadistas e a
política eram achincalhadas. O esculacho colocou vários
governadores e delegados, enquanto judas, sentados em latrinas
sórdidas ou de penico na mão.
Mas
é a garotada do Jacarezinho, unida e conluiada, a que mantém mais
aceso o judas, mesmo em tempos de bom comportamento. Eles aprecem
muito enfeitados e grotescos, além de muitos nas ruas General
Belfort, Dr. Manoel Cotrim e, especialmente, num quegê,
o da Rua Teixeira Leite.
Sete
letreiros viperinos, vexatórios, franxos e chulos enfeitam as
paredes de uma colchoaria. Mais de trinta moleques enfiam-se
assanhados na multidão de curiosos, atiçadores ou basbaques. Os
homens, na maioria pouco atingidos, riem do ataque ferino e achatante
contra as mulheres nos testamentos ‒
faladeiras,
futriqueiras, “cunhadas”, “madrinhas”, “titias”,
“comadres”, infiéis, virgens falsas, viciadas em jogo do bicho
e, principalmente, as “candinhas”. É o mundo pobre e de baixo
nível dos subúrbios cariocas gritando em preto-e-branco.
Ninguém
escapa. Sentado numa latrina em plena calçada, o judas da Rua
Teixeira Leite, tem às suas costas os sete letreiros que descarnam,
sem restrições e economias, os traços mais vivos das intimidades
da região. Praticamente tudo é mexido e remexido:
“Alô,
dona Candinha, que bicho deu? Os Imortais do Bairro; Carlinhos do
Mar; Wilson dos Vidros; Os Convencidos; a Colchoaria do Diabo; As
Perfeições Furadas; Restaurante Chic: a pedida é alta e a comida é
pouca”.
Sentado
na latrina, o judas tem uma inscrição no peito, diz mandado por
quem e a que veio: “Homenagem aos comerciantes de Jacaré”.
A
cena é ridícula, grotesca, mas tensa. A tal dona Candinha das
inscrições do judas vem passando, vestido comprido e fora de moda,
vermelho, mexendo-se barriguda, atarracada, baixota de óculos e
cabelos tingidos de acaju. Não tem como fugir, vê-se obrigada a ler
o cartaz. Fula nas pernas cambaias e em sapatos de saltos comidos,
atrás dos óculos, ele procura, atentamente, o autor da infâmia. Um
gaiato, querendo acalmá-la, recomenda:
‒
Calma,
dona candinha. Aqui em Jacaré tem muitas Candinhas. Pode ser que não
seja a senhora. Não leve a rapaziada a mal.
De
mãos na cintura, a portuguesa dona do botequim, abespinha-se com a
molecada que dança em frente ao judas. Os rapazes gozam a situação.
Letras grandes, está no testamento do judas:
“Alô,
pessoal! Façam suas apostas. Qual dos dois bares vai falir primeiro:
Dona Maria ou seu Antônio?”
Logo depois, o testamento,
alfinetando a vida da vizinhança:
1 ‒
Meu cabelo para o
Jorge Gordo. Um de meus olhos para o Ricardo que é cego e só falta
a bengala.
2 ‒
A camisa para o
Galileu, que só tem uma.
3 – A
gravata para o malandro de Jacaré, o Isaltino Kibon.
4 – A
calça para o Zé Mota, o novo vagabundo do bairro.
Dona Maria, portuguesa do
botequim, zangada, braços cruzados no peito, vê o judas sendo
queimado e se vinga. Fala para as vizinhas lavadeiras:
– Deixa estar. Com essas
fagulhas, quem tem roupa no varal está estrepada.
* in
Malhação do Judas
Carioca, 2ª
ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976, pp. 113-118