sexta-feira, 30 de abril de 2004

Pedra Noventa


A música popular brasileira está em festa. Gostaria de dizer o Brasil, mas sabemos que infelizmente, em boa parte por obra dos nossos donos, a nação ainda não se apropriou definitivamente de suas riquezas mais preciosas. Mas os que vivemos e respiramos a brisa privilegiada dessa sonoridade que brota do seio desse povo mestiço estamos com o coração exultante. Afinal, um dos mais fascinantes espíritos surgidos na canção brasileira no século passado completa nove décadas, singrando forte e decididamente as águas desse terceiro milênio.

“Dorival é gênio universal”. E não sou eu que digo: “Pegou o violão e orquestrou o mundo”, emendou o maestro Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, para os poucos que por desconhecimento, despreparo ou inacreditável soberba podem ainda pôr-se a duvidar dessa verdade simples. Conta sempre o magistral Sivuca que, pedindo certa vez algumas partituras estrangeiras para aprofundamento de seus estudos de harmonia ao respeitadíssimo maestro Guerra Peixe, esse lhe teria rebatido: “pra quê? Está tudo lá na obra do Caymmi...”.* Depoimentos insuspeitos de quem tem a autoridade que nos falta e obriga a valermo-nos de argumentos mais extensos.

Dorival Caymmi é um dos pilares fundamentais de um processo amplo que fez a música popular brasileira, em pouco mais de um século, transformar-se de um ajuntamento de manifestações de cunho basicamente tradicional, ligadas à dança e aos folguedos, a uma das mais sofisticadas, expressivas e criativas manifestções da música universal. A dialética essencial que faz com que a o “canto de nossa aldeia” possa ser o mais universal dos cantos, segundo a definição clássica de Tolstói, encontra na música brasileira expressão privilegiada na obra de autores como Luiz Gonzaga, Pixinguinha e Noel Rosa (sem falar, por exemplo, num Waldemar Henrique, que acabou por não distender tanto suas influências por força do isolamento histórico a que a Amazônia sempre foi submetida). Esses baluartes são emblematicamente responsáveis pelo processo de integração dos elementos básicos (rítmicos, melódicos, harmônicos, líricos, dinâmicos) presentes nas manifestações de feições fortemente regionais numa música que pudesse assumir um cunho mais propriamente nacional, ser consumida em larga escala via difusão pelos meios de massificação e ser reconhecida mundialmente por seus traços distintivos gerais. Trata-se, pois, de uma especial manifestação de uma necessária sensibilidade para se reconhecer a riqueza dos elementos musicais espalhados pela tradição musical informal, sua forte presença no quadro geral dos referenciais estéticos coletivos do povo brasileiro e uma habilidade ímpar para promover sua indispensável amalgamação no processo mais geral que permitirá que se forme a idéia (ainda que arquetípica) de uma música popular especificamente brasileira.

Se Gonzaga traz o som árido do sertão cratense para o ambiente urbano do Rio de Janeiro a década de 40, gerando o dançabilíssimo baião; se Noel é quem primeiro tem consciência do processo de massificação do samba carioca, colhendo e adaptando as melodias e versos dos compsitores dos morros às necessidades musicais do rádio, do disco e do carnaval que se tranformava; se Pixinguinha condensa e sistematiza a herança riquíssima da tradição do choro, espalhando um padrão por toda a música popular que se gravaria em disco por quase três décadas; Dorival certamente abriu os caminhos para que à música popular fossem nacionalmente incorporados os temas ligados à vida no mar e à cultura afro-brasileira, o som lamentoso das canções praieiras, o ritmo dos baticuns dos terreiros etc., elementos todos que tem sua manifestação mais evidente e emblemática na sua Bahia de tanta importância e representatividade na história e na cultura brasileiras.

Caymmi foi pioneiro, ainda na década de 30, da prática de cantar suas próprias composições, fato que se tornaria corriqueiro somente a partir dos anos 60. Também introduziu definitivamente no repertório musical brasileiro a fórmula “voz e violão”, que viria mais tarde a encontrar em seu confessado discípulo e conterrâneo, João Gilberto, uma das expressões internacionalmente mais reconhecidas do gênio musical brasileiro. Como este, o mestre também fez da sonoridade singular de seu violão uma marca personalíssima de sua música, antecipando em muitos anos a larga utilização de dissonâncias harmônicas que se faria comum com o advento da bossa-nova (com sentido estético diverso, anote-se).

Outro traço singular da obra caymmiana que se incorpora definitivamente ao padrão musical brasileiro é o seu poder de síntese. Suas canções são sintéticas (se conhecem a pequena jóia “Canto de Nanã”, com 4 versos curtos e, no todo, não mais que umas 30 notas, saberão exatamente do que estou falando) sem excessos líricos ou melódicos de nenhuma espécie, numa época em que a música brasileira, embora caminhando em diverso sentido, ainda não de todo se livrara dos dramalhões lítero-musicais alla Catulo da Paixão e das serestas derramadas entoadas pelos dós-de-peito de plantão. E mesmo sua obra é enxuta, não obstante com possivelmente a maior proporção de grandes clássicos da música brasileira que qualquer outro compositor. Não temeria dizer que no caminho que conduz a música popular das modinhas derramadas do século XIX à síntese minimalista de um João Gilberto, o velho Dorival é um claro divisor de águas.

Na década seguinte (40) faz brotar inúmeras canções delicadas, de acompanhamento simples, para se ouvir no recolhimento, quando o rádio e o disco estão sendo invadidos pela sonoridade dos fox-trotes dançantes das big bands estadunidenses popularizados pelo cinema. E, finalmente, nos anos 50, quando o samba-canção ganhará o status de expressão musical oficial da classe média brasileira, criará alguns clássicos imorredouros do gênero, dominando com perfeição os temas românticos e as sonoridades intimistas, marcadamente urbanas, aperfeiçoando e superando como nenhum outro grande autor do gênero os paradigmas “bolerizantes” dos temas e melodias.

Na década de 70, aclamado pelas (hoje já não tão) novas gerações da música popular, Dorival Caymmi vai assumindo o papel que lhe cabe tão bem de grande patriarca dessa família musical que tantos belos frutos gerou. A resistência que alguns inexplicavelmente ainda lhe oferecem viria de seu sucesso? Viria do fato de ter conseguido viver dignamente de seu trabalho artístico e ter freqüentado os círculos da elite econômica e intelectual? Sim, porque inegavelmente, foi intérprete e compositor considerado e aclamado pelos seus contemporâneos de várias gerações, contrariando um paradigma demagógico que a tantos deleita: o do artista incompreendido e marginal.

Mil vezes salve Dorival Caymmi, nosso buda-nagô! Junto minha humilde prece à da Família Caymmi neste dia mágico e sensacional em que a alegria musical não nos cabe no peito, e rogo ao nosso pai Xangô:


Protege teu filho, obá de Xangô
Seu Obá Otum Onikoyi
Que tanto precisa
precisa de ti
Pro canto compor
Pra canto cantar
O canto em louvor
Das graças da flor
Da terra, do povo e do mar da Bahia
...
Protege teu filho,
teu filho Caymmi
Dorival Obá Onikoyi
E Stella Caymmi
A mãe de Dori, de Nana e Danilo
Que é musa e mulher
que é amor e amiga!...


* Fonte: Songbook Dorival Caymmi, Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1994

terça-feira, 27 de abril de 2004

Soneto para Eduardo


Coisa não há que mais hoje me espante
Nem maior gosto talvez proporcione
que ver os liames tecidos na insone
atalaia de oculto vigilante

A unir o que os caminhos põem distante.
E por mais que a longitude aprisione
Nenhuma força resiste o bastante
a esse anjo a nos servir de cicerone

Mas eis que se desvela a efígie ignota:
da emoção recôndita num lampejo
emerge dentre as brumas a garota

que nitidamente agora revejo
cacos de vidro em punho, triste e rota
trocados pr’uma pizza e por um beijo

segunda-feira, 26 de abril de 2004

Cravos da esperança

Cravos da Esperança


Ainda que com um dia de atraso, não poderia deixar de plantar aqui um cravo vermelho em homenagem aos 30 anos da derrubada da ditadura salazarista em Portugal, celebrados no dia de ontem.

Nosso Chico Buarque de Hollanda, inspirado pelos ventos da Revolução dos Cravos e imerso em um Brasil dominado ainda pelas trevas da ditadura, escreveu a primeira versão pouco conhecida do clássico Tanto Mar:

Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também que é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim


A canção foi censurada, obviamente. Liberada três anos após, Chico reescreveu a letra, algo decepcionado com os rumos da política portuguesa:

Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
n'algum canto de jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, como é preciso, pá
Navegar, navegar
Canta primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
algum cheirinho de alecrim



Não houve jeito, o episódio remeteu-me à grande festa popular quando da vitória de Lula nas eleições de 2002. Não havia mais ditadura a derrubar, ninguém em sã consciência acreditava em revolução; mas o povo brasileiro encheu-se da esperança de que algo podia ser verdadeiramente transformado, não somente a partir do estado, mas pela recuperação da auto-estima e da liberação do enorme potencial criativo da nossa gente.

É cada vez menos ocultável a nossa decepção, sobretudo com a falta da ousadia e da criatividade que julgávamos seriam as grandes armas de reconstrução da nação. Mas, confesso-vos, ainda guardo renitente um velho cravo para mim. Cá estamos carentes, é verdade, mas não é possível que não tenham esquecido uma sementezinha sequer n’algum canto de jardim...

Se não têm pão, comam brioches...

O Opinião do Edu de hoje cita escrito de autoria de uma certa Ana Cristina Reis, publicado na edição de "O Globo" do último 17 de abril. O que seria um comentário acabou não cabendo lá e vem para cá, para azar de vocês quatro.

Sinceramente, acho que desse aborto do jornalismo, a que por comodidade chamaremos “texto”, podemos extrair valiosas lições sobre o pensamento que domina um fatia considerável de nossas elites, explicitamente, e freqüenta mesmo o inconsciente coletivo de uma larga parcela da nossa população.

Trata-se de uma matriz de pensamento segundo a qual o acesso aos bens materiais deva ser guiado unicamente pelo desejo (no sentido mais hedonista do termo), que funciona como um motor psíquico a impulsionar as atitudes do sujeito, sem o qual estaria este condenado ao tédio eterno e mortal. Ora, tal concepção da realidade pressupõe, logicamente, que todas as necessidades primárias efetivas (assim entendidas aquelas coisas sem as quais a existência material não perdura – o ar, o alimento, o sustento material) estejam plenamente satisfeitas. Isto é, pois, nesse modelo, um dado. Por outro lado, a satisfação das assim chamadas necessidades secundárias (ou aquelas sem as quais a existência não se coaduna com as mínimas expectativas em relação ao uma concepção arquetípica da pessoa humana – a educação, a cultura, o lazer, a cidadania) passa a uma decorrência natural da existência primária. Isto é possível, obviamente, porque esse arquétipo humano é pensado a partir do padrão do próprio sujeito que engendra essa bela representação da realidade.

Assim, portanto, esse modelo pode conceber que o anseio pela terra, pela moradia, pelo trabalho sejam uma mera afetação psicológica, um capricho de quem não tem algo e se sente motivado a conseguir, para afastar seu vazio interior, assim como um colecionador de vinhs e sapatos. Ou, por outro modo, se nunca me passou pela cabeça que um ser humano não tenha as necessidades mais elementares satisfeitas por obra e graça da ordem natural das coisas, automaticamente eu tendo a considerar que problemas como não ter o que comer ou onde dormir não possam estar na pauta de preocupações elementares dos humanos como eu. A conclusão, ainda que não formulada, não pode ser outra: os que se debatem com essas primárias e insatisfeitas necessidades não partilham da minha natureza, ou são uma anomalia na ordem natural. A partir daí, também não segue que devam ter atendidas as suas demais necessidades, pois o padrão de expectativa não lhes é aplicável.

A formulação pode parecer, a alguns, forte nas tintas. Mas já não viram vocês gente doando roupa velha que nem pra pano de chão serviria, justificando: “essa gente não liga pra essas coisas...”? Ou seja, ESSA gente não é a nossa gente que come, dorme, se veste, vai à escola, ao médico e trabalha. É uma outra gente...

A outros, o argumento pode parecer prolixo demais. Mas eu justifico o esforço. Não posso de outro jeito compreender como uma criatura que dispõe das ferramentas de um jornal do tamanho de “O Globo” possa comparar a necessidade de terra para trabalhar, comida e trabalho a um “apetite psicológico” por um vinho ou um sapato caro. A não ser, por óbvio, que a autora considerasse que as oportunidades na sociedade brasileira são iguais para todos e que os que não têm condições mínimas de trabalho, saúde, alimentação e moradia devam isso à sua pouca disposição ou habilidade para ganhar dinheiro. Mas eu tendo mais a acreditar em abjetas deformações ideológicas do que em simples burrice e estupidez em tamanho grau. Soa-me benevolente demais com quem não merece.

sexta-feira, 23 de abril de 2004

Dia de São Jorge Pixinguinha Vianna de Ogum


O meu Rio de Janeiro está em festa. Feriado na cidade, dia de São Jorge, sincretizado com Ogum (na Bahia, o santo representa Oxóssi). Ferve o Campo de Santana, fervem os terreiros. E Quintino, então...

Ah!, que vontade de ir pra concentração na Vista Alegre, casa do bom Camunguelo... Pra depois assistir a missa das 7h00, já de fogo, e depois encostar naquelas barraquinhas, esticar pelos butiquins de Cascadura, até as pernas agüentarem. Ouvir aquelas histórias e haja flauta... E haja fé!

Dia de Pixinguinha, dia do choro. Dia de rezar. Dia de ouvir. De beber de cantar.

Canta, Moacyr!


Medalha de São Jorge

(Moacyr Luz / Aldir Blanc)

Fica ao meu lado, São Jorge Guerreiro
com tuas armas, teu perfil obstinado
me guarda em ti, meu Santo Padroeiro
me leva ao céu em tua montaria
Numa visita a lua cheia
que é a medalha da Virgem Maria

Do outro lado, São Jorge Guerreiro
põe tuas armas na medalha enluarada
te guardo em mim, meu Santo Padroeiro
a quem recorro em horas de agonia
tenho a medalha da lua cheia
você casado com a Virgem Maria

O mar e a noite lembram a Bahia
orgulho e força, marcas do meu guia
conto contigo contra os perigos
contra o quebranto de uma paixão
Deus me perdoe essa intimidade:
Jorge me guarde no coração
Que a malvadeza desse mundo é grande em extensão
e muita vez tem ar de anjo
e garras de dragão



Som de Prata

Moacyr Luz / Paulo César Pinheiro)


Nasceu no Rio de Janeiro
Dia do Santo Guerreiro
Naquele tempo que passou
Foi o maior mestre do choro
Tinha um coração de ouro
E que bom compositor

Foi Carinhoso e foi Ingênuo
E na roda dos boêmios
Sua flauta era rainha
E em samba, choro e serenata
Como era doce o som de prata, doutor
Que a flauta tinha
O embaixador desta cidade
Meu Deus do Céu, ai! que saudade que dá
Do velho Pixinguinha

Veio da terra de Zambi, sangue de malê
De uma falange do Rei Nagô
Filho de Ogum, de São Jorge, do batuquejê
De Benguelê, de iaô, Rainha Ginga
É que sua avó era africana
A rezadeira de Aruanda, vovó, vovó cambinda
Só quem morre dentro de uma igreja
Vira orixá, louvado seja, Senhor!
Meu Santo Pixinguinha

Ele é de Benguelê
Ele é de iaô
E do batuquejê
Ele é do Rei Nagô
Tem sangue de malê
É banto sim sinhô...

sábado, 17 de abril de 2004


Há certa tristeza indizível e íncita que independe de específicos estares.

Essa tristeza perene que é a contraposição necessária do esplendor da vida e filha da finitude jaz subjacente em cada nosso movimento. E por estranha e magnífica confluência, expressa-se acentuadamente no mais íntimo de todas as manifestações genuínas do espírito brasileiro. “A tristeza é senhora”. E embora independa dos risos e sisos, manifesta-se positivamente na forma dessa nossa melancolia vaga.

A Floresta, em toda sua solidão imensa de rios e verdes sem fim, incorpora essa melancolia nos seus falares e cantares. O país e o mundo deslumbram-se com os róseos geraísmos, compreensivelmente. Mas um país que não olha seu umbigo não olhará jamais seus recônditos íntimos. A Amazônia é o sexo do Brasil, país mulher. O falar do caboco ribeirinho é o som mavioso que ecoa dos ocos férteis e olorosos, inebriantes.

E não se entendem sem um acostume. Iniciação é pouco. Pede-se uma dedicação, uma entrega, um sacrifício. Há que se navegar, e que se prosear e que se fumar, nas distâncias invencíveis, nos silêncios intermináveis.

E porque hoje as frutas e as linhas e o coração afloram-se-me rachados (e agora sabereis por que, ai!), ofereço-vos. Ela saberá. A mastigação é presente de sabiá-pai.

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Para a identificação gráfica da maneira de falar dos cabocos amazônicos, que misturam ao português termos de origem africana e indígena, originando sortidas formas de alterações fonéticas características, são aqui utilizadas de forma definida e diversa do original, segundo abaixo:

- o apóstrofe registra pronúncia sempre vibrante do “r” (herança tupi) . É também usado no início de palavras para indicar supressão de fonemas.

- trema expressa a pronúnica do “o” ou do “e” com seus valores originais e não os semi-vocálicos “u” e “i”

- repare-se a modificação do ditongo “ou” para um som localizável entre o “o” e o “u”, de difícil precisão




Fruta Rachada


(Walter Freitas e Joãozinho Gomes)


Më enveredu pula ‘ribêra
paresque inté pros Araguai-ai
mundo é tu quë leva as andadêra
‘strela dö Nor’te deitu, ai

me deixu fruta ‘rachada
im cada pé dë dur‘ cresceu
um araçá de cor morena ‘strada
Nas planta cá bem dentro d’eu

më enveredu pula ‘ribêra
paresque inté pros Araguai-ai
mundo é tu quë leva as andadêra
noite incendiada im nos arraiá

me deixú fruta ‘rachada
era os acúcar‘ dos biribás
‘strela do Nor‘te, manhã ‘raiada
‘scanchu-se fêmea nos ingás

Tambur truveja as bor‘dadêras
truveja, ê boi ‘relevantú
Perobo é quem xingu-me feia ê
Zé Breu bor‘da ‘strelas pro Nhô

Ar‘ruma Chica das Candeias
traz pinga, a tar‘ lá do Nestur
traz fita, traz muié festêra, ê,
depressa, onça inté já roncú

Pula patêxa du-te minhas mãos
vi num dos seios jor‘ro enfim ruim
ë o puço ‘stranho que eu não vi
fez ‘rio de mágoa n’água dë mim

Ai, ai, me beija pulo tudo amur‘
danei no mundo ‘sim que te per‘di
a fim do fundo o poço ë a dur‘
me dero abrigo ah sigo me vú!

Andu pur‘ tudas muitas léguas
meu cor‘po im mim num‘de avexar‘
meu cor‘po em flor‘ mur‘chosa aber‘ta ë
- três vez lembrei dos matagá

pavures im fina’r de festa
tremures dentro um temporá
dë puraqué de punho um resto, ê,
tar’vez me vor‘te a te encontrar‘

Pula patêxa du-te minhas mãos
vi num dos seios jor‘ro enfim ruim
ë o puço ‘stranho que eu não vi
fez ‘rio de mágoa n’água dë mim

Ai, ai, me beija pulo tudo amur‘
danei no mundo ‘sim que te per‘di
a fim do fundo o poço ë a dur‘
me dero abrigo ah sigo me vú!

‘scurume im nos meus alguidares
irapuru assubinhadur
vaçuncê tece as acanitares
aluá nö pote aluou

Se asserene mas se asserene
meu coração, sumano, cantur‘
dereiereiereieridene
amur, meu amur, meu amur

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Më enveredu pula ‘ribêra...essa toada de boi, de amor e despedida, abre mostrando os caminhos dos amantes que se separam

paresque inté pros Araguai-ai - o Rio Araguaia lastimado pelo amante que fica na imensidão de sua ribeira. Está perdida a amada.

‘strela dö Nor’te deitu, aiimagem que marca o tempo decorrido desde a partida, pelo movimento dos astros do céu

fruta rachadacrença bastante arraigada na cultura nortista de que a mulher, subindo em uma árvore, faz com que seus frutos passem a nascer rachados. Evidente louvação do sexo feminino e a influência que se lhe atribui.

im cada pé dë dur‘ cresceu – a transposição do movimento objetivo do crescimento da natureza, para a realidade subjetiva do amante abandonado, fornece a dimensão extra dessa relação do homem amazônico com a criação e destruição à sua volta.

Noite incendiadaintroduz-se a situação das festas juninas com suas fogueiras e arraiais, cenário da história

‘scanchu-se fêmea nos ingásmais uma vez a influência do sexo feminino sobre o abrir-se das frutas

Tambur truveja as bor‘dadêras tambores são as barricas usadas pelos tocadores de boi-bumbá. Os personagens animam os bastidores do terreiro empenhados em dar os últimos retoques nas inumentárias, nas músicas e nos demais detalhes da brincadeira. O boi se prepara para ir às ruas. O trovejo das barricas avexa as mulheres para que tudo fique pronto a tempo.

ê boi ‘relevantúo boi que descansa no meio do tambor (terreiro) levanta-se para brincar, tendo embaixo o “tripa”, figurante considerado “a alma” do bicho.

Perobofresco, viado, na linguagem caboca. Figura freqüente nas brincadeiras de boi, reagindo e dizendo que perobo é quem o xingou de feia.

Xingu-meo sotaque caboco transforma a palavra no nome do rio, reintroduzindo o tema da separação e da distância

Zé Breu bor‘da ‘strelas pro Nhôum homem borda estrelas para outro. Erotismo sutil subjacente no trabalho poético, retratando um elemento homossexual presente na brincadeira do boi.

Chica das Candeiasnegra cujo poder de iluminar as almas valeu-lhe o apelido.

onça inté já roncú - “onça” é a denominação da puíta ou espécie de cuíca usada nas funções de boi, de som grave e profundo como o ronco de um animal

Pula patêxa du-te minhas mãosa pateixa e umapeça de ferro, com três ganchos, usada para retirar baldes e outros objetos que caem nos poços. Comparação com as mãos do amante tentando resgatar a amada

vi num dos seios jor‘ro enfim ruimpara ela conta-se definitiva separação:o jorro dos sentimentos que se turvam e se transformam na dor da perda irreparável

ë o puço ‘stranho que eu não vi desse estranho poço que de repente se abre à sua frente brota um rio de mágoa

Ai, ai, me beija pulo tudo amur‘“esquematiza-se a seqüência de um dialogo. O homem volta a falar, embora os dois não se achem face a face. Ele tam,bém parte ao conhecer que a perdeu e acha abrigo na dor e no fundo poço de seus sentimentos. Abate-se o tempo sobre a história de amos dos dois: a memória e o próprio corpo em flor se desvanecem. Todos os pavores de um fim inexorável se realizam”

dë puraquê de punho um restoreferência a uma crença de que a introdução de um pedaço do rabo do puraquê no punho confere força descomunal ao indivíduo

‘scurume im nos meus alguidaresa mulher retorna à narrativa, assim como a calmaria ao quotidiano. Os alguidares escurecem-se pelo açaí ali batido, o pássaro canta, os ornamentos de cabeça (acanitares) voltam a ser tecidos, o aluá está pronto. A serenidade volta ao coração. Reforça-se o sentimento cíclico e de retorno tão presente na cultura amazônica.

Fonte: Disco Tuyabae Cuaá (1987) do compositor paraense Walter Freitas

quinta-feira, 15 de abril de 2004

"Posso me identificar?"


Serão impressionantes as cenas da violência no morro da Rocinha nos últimos dias? Sinceramente, conseguímo-nos ainda impressionar com a guerra que se incorporou definitivamente ao nosso cotidiano?

Talvez ainda nos impressione a trajédia “vista assim do alto” dos seiscentos mil assassinados em 20 anos, e dos mais de dois milhões de mortes violentas, encampados os números do trânsito e dos suicídios, em números oficiais do IBGE. Números eloqüentes de uma guerra que há muito deixou de ser surda.

A comparação com a guerra declarada no Iraque não é minha – é do JB de ontem – e nem é nova. Em 09 de abril de 2003, há exato um ano, escrevia um texto que republico abaixo, justamente traçando um paralelo entre a guerra de lá (então supostamente acabada...) e a de cá (no auge da onda de ataques das supostas milícias do tráfico às posições policiais). Mudem o “2003” pelo “2004”. O cenário desolador, desértico, é rigorosamente o mesmo.


E é por isso que concito vivamente os amigos do Rio de Janeiro, que encampem a idéia da manifestação de amanhã, sexta-feira (16/04), a partir das 14h00, no Largo do Machado, sob o eslogan “Posso me identificar?”. Trata-se de uma iniciativa de jovens lideranças de comunidades de várias regiões da cidade, chamando a atenção para o abandono e o descalabro em que suas vidas encontram-se mergulhadas, sem assistência médica, sem escola, sem trabalho, acossados pela violência social e pela truculência policial. Estarei espiritualmente presente, mas gostaria muitíssimo que muitos de vós me pudessem representar de corpo presente.


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Guerra nossa

Fernando Szegeri


Fui à rede esta manhã em busca de informações sobre o boato de fim da guerra na longínqua Bagdá. Mas meus caminhos detiveram-se no noticiário sobre mais uma madrugada de extrema violência nas ruas da cidade do Rio de Janeiro.

Este texto não almeja poesia, nem filosofia e sequer se propõe a instar a vossa comoção, é importante que isto esteja claro. É apenas uma conclamação a que deixemos de escamotear a evidência gritante dos fatos. Evidência que nos massacra ao destruir as representações de nós mesmos a que nos acostumamos - por motivos os mais variados -, impedindo assim que nos reconheçamos e, por conseqüência, possamos operar a distinção fundamental entre “o que somos” e “o que não somos”. Gostaria de que o lêsseis com a mesma serenidade grave de que tento me cobrir ao escrevê-lo.

Cresci acompanhado da idéia tão disseminada quanto difusa de que um dia “o morro desceria e não seria carnaval”. Assim como no samba, a idéia se manifesta socialmente de variadas formas: “isso aqui só vai ter jeito com uma revolução”; “qualquer dia que o povo se cansar, vai ser uma guerra civil”; e por aí. Concomitantemente, compartilhamos a convicção que “alguma coisa deveria ser feita”, que “essa situação não pode perdurar”, ou. que “o nível de nossa miséria é insuportável”. Entretanto, a idéia de transformação radical, de “revolução”, de “guerra” sempre esteve associada à de “redenção”, de triunfo das forças legítimas, de afirmação “da vontade do Povo”, do banimento das injustiças. Sim, o “Povo”, este estranho não-sujeito social, sem face, sem ideologia, sem contradições ou divisões, o escatológico messias salvador.

Mais do que gostaríamos de admitir, somos colonizados por um idealismo que enxerga a história caminhando para o triunfo da razão civilizatória, donde os momentos de barbárie nada mais são do que a necessária antítese a ser dialeticamente superada. Sempre senti que as idéias de falência geral, de guerra generalizada, de colapso absoluto não habitavam o conjunto das nossas representações do real ou do possível, antes figurando como uma espécie de anti-utopia, condensando a imagem do indesejável de maneira simbólica, mas não como uma ameaça real, numa espécie de adolescentismo psico-social. Porém, mais difícil do que incorporarmos a realidade da guerra civil deflagrada nas nossas ruas, por sobre paisagens que nos são tão caras e familiares, é encararmos que as armas tenham sido definitivamente empunhadas não pela mão redentora e mítica do “Povo”, em nome da Justiça, mas pela escória abjeta, dividida, contraditória, em nome da vingança e da destruição, ou em nome de nada. Não poderemos jamais encarar a realidade de que esta guerra não esteja orientada para instaurar a Civilização Justa, mas a barbárie completa, a destruição e a morte da sociedade.

Não há mais como e nem porque dourar a pílula de nossa triste realidade: a guerra civil está entre nós instaurada. Remeto-vos ao sítio virtual do jornal “O Globo On Line” e peço que compareis serenamente os fatos estampados nos noticiários de hoje com os dos conflitos congêneres mundo afora. Nas zonas norte e oeste do Rio de Janeiro, que representam a maioria esmagadora da área da cidade, há muito instaurou-se o toque de recolher, expresso nas favelas, tácito nas ruas. Ônibus e carros são atacados diariamente, assim como quotidianos são os ataques de milícias armadas a postos e guarnições policiais. Patrulhas são interceptadas nas ruas. O número de mortes violentas é estatisticamente comparável a zonas de conflito declarado. Não, não temos e não teremos centenas de milhares de tutsis, hutus ou curdos incinerados em poucos dias. Isto não tira de nossa situação o estatuto de guerra civil declarada.

Ora me direis nada lucrarmos com o reconhecimento formal da guerra, ou que meras rotulações não influenciariam no curso da realidade instaurada. Não creio. Há conseqüências desde jurídicas até simbólicas, todas permeadas pela indelével dimensão política. Entre as primeiras, notabiliza-se a possibilidade de decretação do estado de defesa, do estado de sítio e/ou da intervenção federal, todas medidas constitucionalmente previstas e harmônicas, malgrado anômalas, com os princípios do estado democrático de direito. Mas são os efeitos simbólicos que mais nos interessam. Quem sabe, pela primeira vez despojados violentamente dos andrajos ideológicos que desde sempre encobriram a escandalosa e impudica nudez moral de uma sociedade construída sobre a exploração exauriente da grande maioria por uns poucos, possamos enfim perfilarmo-nos para o combate, não contra um nosso semelhante, mas contra a própria guerra em si, alegoria pavorosamente real de nossa miséria.

(09 de abril de 2003)

quarta-feira, 14 de abril de 2004

Soneto para Cristina


Por mais que sempre tente e queira
Não impeço que a lembrança me visite
Dos cachinhos rolando a ribanceira -
maldade de menino sem limite

Não é mais velha, sequer caçula – vixe!
Sofre bem mais a filha sanduíche!
Mas por mais que de dois lados apanhe
Sempre foi preferidada da mamãe

Hoje longe de nós, em outra cidade
Na montanha gelada – miserere!
Casada – pode? – com um carabinieri

Faz com que mais torçamos contra a Itália
Embora saibamos felicidade
ser coisa que em toda vida mais valha

segunda-feira, 12 de abril de 2004

Araguaia Vermelho


Há exatos 32 anos, iniciava-se na região banhada pelo Rio Araguaia o maior levante armado organizado de resistência à ditadura militar brasileira instaurada em 1964. O Grande Rio viu, durante dois anos e meio, suas águas tingirem-se do rubor do ideal e do sangue de jovens brasileiros conscientes da necessidade histórica de se opor à barbárie inaceitável do obscurantismo oficial, financiado pelos interesses do grande capital e apoiado por boa parte da classe média que se refastelava numa falsa pujança que apresentaria sua conta anos depois.

Peço encarecidamente a vocês que, não só em nome de um compromisso com a justiça e a decência que queremos imperem um dia no Brasil, mas também da dívida que temos com uma história falseada, escondida e manipulada, leiam o artigo profundo e emocionado de hoje do historiador comunista Augusto Buonicore, publicado no Portal Vermelho.

Leiam, como eu li e guardei. Para aquelas horas em que temos a tendência de menoscabar a dimensão cruel e covarde do regime repugnante e desprezível impingido pelos militares sob o aplauso de muitos que hoje posam de defensores da democracia e da liberdade.

quarta-feira, 7 de abril de 2004

S.E.M.P.R.E.


Amigos, sinto que até os quatro cavaleiros do Apocalipse me querem abandonar. Também, pudera. Sei que ando negligente para convosco e dói, sobretudo, e não só quando rio. Mas saibam que não é por falta de disposição em aborrecer-vos, tampouco por falta das minhocas a caraminholar o solo das idéias, antes pela exacerbação recente da extração de mais-valia a partir da minha força de trabalho pobremente prostituída, menos dignamente que nas calçadas.

Mas, para alegrar a vossa Semana Santa , não vos perturbarei com temas acres e descoloridos. Falarei sobre a única coisa sobre a qual realmente entendo alguma coisa.

Sim, porque sabidamente, sou um sujeito que discorre sem muitos problemas sobre uma gama reconhecidamente vasta de assuntos. Eu sou daquele tempo antigo em que a gente aprendia as coisas vivendo aqui um tiquinho, lendo um jornal ali, uma enciclopediazinha pra tirar as dúvidas. Os títulos mais robustos quase sempre a esmo, sem preocupações mais nobres que não os interesses evidenciados pelos humores mais despertos na hora de entrar na livraria.

Mas como todo mundo que entende um pouquinho de um monte de coisas, me estrepo se o convite envolve mergulho em águas mais profundas. Sou um estrangeiro nessa vasta pátria de especialistas capazes de discorrer horas a fio sobre a volubilidade comportamental das mitocôndreas das células hepáticas dos canários belgas machos. É de temperamento. Também danço mais ou menos, toco violão mais ou menos, cozinho mais ou menos.

Há, entretanto, uma matéria, apenas uma única, sobre a qual considero-me conhecedor profundo, ombreado com os grandes “experts” mundiais, exigindo, portanto, respeito e reconhecimento. Uma área pela qual transito, modestamente, com a elegância de um Sócrates, a força de um Rivelino e a autoridade de um Luís Pereira. Trata-se daquele ramo da ciência que estuda o fenômeno “bar” (também conhecido como ‘butiquim”) e todo o sistema de relações que o envolve e implicações que gera, com as sub-áreas afetas a essa complexa seara do conhecimento humano, a saber: o beber (que difere da bebida, em si), o comer, o petiscar, o tratar os garçons e proprietários, o prosear, o discutir, o arrumar encrenca na hora certa, o chegar em casa depois etc., etc.

Como pudestes já perceber, orgulho-me deste conhecimento sólido, vasto e estribado, fruto de prática intensa, reflexão profunda e, sobretudo, incessante intercâmbio científico, posto que talvez em nenhuma outra área do saber o conhecimento tenha um caráter tão coletivo. Papai, por óbvio, partilha desse orgulho, mestre que foi nos meus primeiros caminhos e ele mesmo um PhD reconhecido no metiê. Não se pode dizer o mesmo de mamãe...

O fato que motiva este festivo relato, porém, é diverso, embora conseqüente. É que encontrei nas minhas muitas jornadas por esse universo maravilhoso de papos-furados, álcoois, frituras e mijadas anti-higiênicas, meia-dúzia de criaturas que não só partilham o meu nível de conhecimento, mas sobretudo a paixão derramada e militante pelo engrandecimento desse repositório de sapiência tão brasileira que é o bar. Amantes como eu dos rituais próprios desse espaço, fundaram uma Confraria de iniciados, com estatuto, plano de carreira e liturgias severas: a Sociedade Edificante Multicultural dos Prazeres e Rituais Etílicos - S.E.M.P.R.E . Tudo costurado pelo fio inquebrantável de uma amizade atroz, as reuniões desses profissionais da arte de butecar só podem ser uma usina voluptuosa de idéias, canções, porres, confissões, afetos, chorumelas, discussões, brigas, ou seja, tudo o que cerca uma vida devotada verdadeiramente ao butiquim.

Assim é que, regularmente indicado e admitido “nas regras da arte”, tomarei posse no corrente mês de abril, na condição muitíssimo honrosa e envaidecedora de primeiro confrade não carioca, pelo menos de nascimento e/ou residência. Trata-se, em primeiro, da solidificação de uma amizade fraternal que me uniu a Eduardo Goldenberg, estendeu-se a Fernando Goldenberg e agora espalha-se lenta e fortemente a Vidal (a Lenda), Malavota, Dalton e Zé Colméia. Em segundo, do reconhecimento público de minha inequívoca competência na matéria, evidenciado na concessão do grau de bebum, que mais uma vez orgulha papai e preocupa mamãe.

O que se seguirá em minha vida, daqui por diante, caríssimos, não saberei dizer. As idas mensais e relâmpagos ao Rio serão inevitáveis. Que venham os porres, certos e esplendorosos; as choradeiras, declarações, polêmicas e brigas. Tudo registrado e reduzido a termo, assinado quando lido e achado conforme. Porque nos dias que vão, como bem disse o Poeta, “há, de um modo geral, uma acentuada tendência para se beber”.

segunda-feira, 5 de abril de 2004

Amigos, empresto do Poetinha o retrato sem retoques do meu dia, do meu momento. Do meu ser. E de quebra, um abraço saudoso para o maior dos meus mestres.


Mensagem a Rubem Braga


Os doces montes cônicos de feno
(Decassílabo solto num postal de Rubem Braga, da Itália.)


A meu amigo Rubem Braga
Digam que vou, que vamos bem: só não tenho é coragem de escrever
Mas digam-lhe. Digam-lhe que é Natal, que os sinos
Estão batendo, e estamos no Cavalão: o Menino vai nascer
Entre as lágrimas do tempo. Digam-lhe que os tempos estão duros
Falta água, falta carne, falta às vezes o ar: há uma angústia
Mas fora isso vai-se vivendo. Digam-lhe que é verão no Rio
E apesar de hoje estar chovendo, amanhã certamente o céu se abrirá de azul
Sobre as meninas de maiô. Digam-lhe que Cachoeiro continua no mapa
E há meninas de maiô, altas e baixas, louras e morochas
E mesmo negras, muito engraçadinhas. Digam-lhe, entretanto
Que a falta de dignidade é considerável, e as perspectivas pobres
Mas sempre há algumas, poucas. Tirante isso, vai tudo bem
No Vermelhinho. Digam-lhe que a menina da Caixa
Continua impassível, mas Caloca acha que ela está melhorando
Digam-lhe que o Ceschiatti continua tomando chope, e eu também Malgrado uma avitaminose B e o fígado ligeiramente inchado.
Digam-lhe que o tédio às vezes é mortal; respira-se com a mais extrema
Dificuldade; bate-se, e ninguém responde. Sem embargo
Digam-lhe que as mulheres continuam passando no alto de seus saltos, e a moda das saias curtas
E das mangas japonesas dão-lhes um novo interesse: ficam muito provocantes.
O diabo é de manhã, quando se sai para o trabalho, dá uma tristeza, a rotina: para a tarde melhora.
Oh, digam a ele, digam a ele, a meu amigo Rubem Braga
Correspondente de guerra, 250 FEB, atualmente em algum lugar da Itália
Que ainda há auroras apesar de tudo, e o esporro das cigarras
Na claridade matinal. Digam-lhe que o mar no Leblon
Porquanto se encontre eventualmente cocô boiando, devido aos despejos
Continua a lavar todos os males. Digam-lhe, aliás
Que há cocô boiando por aí tudo, mas que em não havendo marola
A gente se agüenta. Digam-lhe que escrevi uma carta terna
Contra os escritores mineiros: ele ia gostar. Digam-lhe
Que outro dia vi Elza-Simpatia-é-quase-Amor. Foi para os Estados Unidos
E riu muito de eu lhe dizer que ela ia fazer falta à paisagem carioca
Seu riso me deu vontade de beber: a tarde
Ficou tensa e luminosa. Digam-lhe que outro dia, na Rua Larga
Vi um menino em coma de fome (coma de fome soa esquisito, parece
Que havendo coma não devia haver fome: mas havia).
Mas em compensação estive depois com o Aníbal
Que embora não dê para alimentar ninguém, é um amigo. Digam-lhe que o Carlos
Drummond tem escrito ótimos poemas, mas eu larguei o Suplemento. Digam-lhe que está com cara de que vai haver muita miséria-de-fim-de-ano
Há, de um modo geral, uma acentuada tendência para se beber e uma ânsia
Nas pessoas de se estrafegarem. Digam-lhe que o Compadre está na insulina
Mas que a Comadre está linda. Digam-lhe que de quando em vez o Miranda passa
E ri com ar de astúcia. Digam-lhe, oh, não se esqueçam de dizer
A meu amigo Rubem Braga, que comi camarões no Antero
Ovas na Cabaça e vatapá na Furna, e que tomei plenty coquinho
Digam-lhe também que o Werneck prossegue enamorado, está no tempo
De caju e abacaxi, e nas ruas
Já se perfumam os jasmineiros. Digam-lhe que têm havido
Poucos crimes passionais em proporção ao grande número de paixões
À solta. Digam-lhe especialmente
Do azul da tarde carioca, recortado
Entre o Ministério da Educação e a ABI. Não creio que haja igual
Mesmo em Capri. Digam-lhe porém que muito o invejamos
Tati e eu, e as saudades são grandes, e eu seria muito feliz
De poder estar um pouco a seu lado, fardado de segundo-sargento. Oh
Digam a meu amigo Rubem Braga
Que às vezes me sinto calhorda mas reajo, tenho tido meus maus momentos
Mas reajo. Digam-lhe que continuo aquele modesto lutador
Porém batata. Que estou perfeitamente esclarecido
E é bem capaz de nos revermos na Europa. Digam-lhe, discretamente,
Que isso seria uma alegria boa demais: que se ele
Não mandar buscar Zorinha e Roberto antes, que certamente
Os levaremos conosco, que quero muito
Vê-lo em Paris, em Roma, em Bucareste. Digam, oh digam
A meu amigo Rubem Braga que é pena estar chovendo aqui
Neste dia tão cheio de memórias. Mas
Que beberemos à sua saúde, e ele há de estar entre nós
O bravo Capitão Braga, seguramente o maior cronista do Brasil
Grave em seu gorro de campanha, suas sobrancelhas e seu bigode circunflexos
Terno em seus olhos de pescador de fundo
Feroz em seu focinho de lobo solitário
Delicado em suas mãos e no seu modo de falar ao telefone
E brindaremos à sua figura, à sua poesia única, à sua revolta, e ao seu cavalheirismo
Para que lá, entre as velhas paredes renascentes e os doces montes cônicos de feno
Lá onde a cobra está fumando o seu moderado cigarro brasileiro
Ele seja feliz também, e forte, e se lembre com saudades
Do Rio, de nós todos e ai! de mim.


(Vinícius de Moraes, in Antologia Poética - 2ª ed. aumentada, Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960)